Deborah Vier Fischer
Recentemente coube-nos a tarefa de atualizar alguns pontos do Projeto Político-Pedagógico da escola. Uma dificuldade residiu em rever certos aspectos por uma “exigência” legal, diante de uma recomendação do Ministério Público, enviada a todas as escolas da rede privada de Porto Alegre, com prazo exíguo para ser colocada em prática. Diante desse fato e da impossibilidade de diálogo, esclarecimento ou tentativa de entendimento dos princípios que levaram a tal exigência, pusemo-nos a pensar, não tanto sobre a temática em relação à qual teríamos de ajustar o documento, mas sobre as dimensões política e pedagógica que atravessam tal situação, tendo em vista se tratar de algo sobre o que não tivemos, como escola, qualquer possibilidade de gerenciamento. Nasce daí este texto, que se dedica a refletir sobre a importância desse documento para a escola, na medida em que é com ele e através dele que operam valores éticos, filosóficos, políticos, educativos e culturais, que definem modos de ser sujeito, modos de ser sociedade, modos de nos relacionarmos com o pequeno mundo que é a escola e o grande mundo que está para além dos seus muros.
Estávamos às voltas com essas ideias, ainda digerindo sobre a complexa incumbência, buscando formas de manter alguma coerência entre o que a escola tem como valor e o que a demanda legal exige, quando, ao fazer uma busca na biblioteca, atrás de uma luz, uma companhia de pensamento para minimizar a angústia, deparei-me com um texto de Bernard Charlot, apresentado em Porto Alegre, no ano de 2003, período em que a nossa cidade sediava o 2º Fórum Mundial de Educação, importante evento que muito contribuiu para a formação de diversos profissionais da rede pública e privada da cidade, entre os quais me incluo. O texto faz parte do posfácio do livro Os tempos da vida nos tempos da escola: construindo possibilidades (1), organizado por Jaqueline Moll, cujo título é justamente Projeto político e projeto pedagógico.
Charlot se dedica a fazer uma série de considerações de fundamental importância para pensarmos as relações entre a dimensão política e a dimensão pedagógica que envolve a construção desse projeto e chama a atenção para o tanto de político que está presente em um programa pedagógico. Não existe debate pedagógico puro, diz o autor, há sempre uma dimensão política em todas as decisões, tendo em vista os valores fundamentais que regem cada instituição.
“Um projeto pedagógico não é apenas um programa de ações, de organização, de gestão”. (CHARLOT, 2003, p. 260)
Mas há também que pensar que um projeto pedagógico não pode ser oriundo apenas do projeto político. Ele deve buscar uma espécie de aliança entre o político e o pedagógico, manter uma coerência de pensamento, que “defina a organização de uma sociedade, ou de um grupo humano, em todos os seus componentes”, para em seguida ser traduzido “em uma dessas dimensões da vida coletiva” (idem), isto é, reformulado de acordo com as especificidades de cada uma dessas dimensões. Se não for assim, diz o autor, pode-se ter um projeto político muito bem escrito e ao lado dele, um projeto pedagógico que em nada ou quase nada corresponda ao anterior. Não é raro termos acesso, como profissionais da educação, a PPPs que não realizam essa aliança entre as duas dimensões, que anunciam discursivamente uma série de palavreados bonitos sobre formação, sobre inclusão, sobre avaliação, sobre o acesso de todos e todas à educação, no entanto, pedagogicamente falando, segue em alta o número de estudantes candidatos à reprovação, o acesso às diferentes formas de cultura é rebaixado, tendo em vista a busca pelo êxito, através de notas classificatórias e outros modos de avaliação que pouco ou nada levam em consideração os valores prometidos. Isso sem falar nas armadilhas de se filiar a uma determinada proposta ou método, sem conhecimento aprofundado, o que colabora para ampliar as contradições entre a dimensão política e pedagógica. É o próprio Charlot quem traz uma das contradições que mais temos tido conhecimento no meio escolar nos últimos tempos: “um discurso pedagógico construtivista (o aluno somente pode aprender por sua atividade intelectual) e práticas contraditórias com esse discurso” (idem, p. 261), como por exemplo, quando o estudante é avaliado com respostas do tipo “verdadeiro ou falso” ou simplesmente pela nota da prova.
Enfim, todo esse movimento de pensamento nos levou a formular algumas questões sobre a tarefa de rever pontos do PPP da escola, sem estar a dimensão política ajustada à pedagógica, na medida em que a obrigatoriedade a que a escola foi exposta, com amparo legal, há que se dizer, não condiz com o modo como a escola entende e busca manter a coerência entre as duas dimensões.
Vivemos, então, um dilema: estaremos nós, diante de uma exigência essencialmente política, distante da aliança pedagógica que dela teria de emergir para ser tomada como coerente?
É possível que quem me leia e tenha passado pela mesma situação diga que não, pois a recomendação recebida diz, detalhadamente, dos meios e recursos pedagógicos indispensáveis para que ela seja colocada em prática, urgentemente. Não faltou informação. Faltou, talvez, justamente o que Charlot tão bem aponta em seu texto de precisos quinze anos atrás: a possibilidade de levar em conta o que significam politicamente as nossas ações pedagógicas, podendo respeitar os princípios que defendemos como escola na construção – ou, nesse caso, na revisão – do nosso projeto, colocando-os em prática nos equipamentos, na formação, nos programas e nos currículos oferecidos.
Se não for assim, acredito, seguiremos apenas cumprindo o que nos chega, via ordem judicial ou qualquer outra forma de regulação, sem produzir pensamento sobre o que, de fato, merece atenção por parte de todas as pessoas envolvidas em garantir ensino justo e de direito e aprendizagens efetivas, com acesso de todos e de qualquer um(a). E isso não se faz por imposição, mas por estudo, conversa, argumentação e crença na capacidade dos profissionais da educação em fazer a diferença na vida de quem por ela passar. Isso é matéria política e pedagógica de um Projeto Político-Pedagógico, o chamado PPP, figura conhecida na escola, qualquer escola.
(1) Editora Penso, Porto Alegre, 2013.