Celso Gutfreind
“Sono e morte, as tenebrosas águias
Rodeiam noite adentro essa cabeça”
Georg Trakl (2)
Crianças, quando estão bem, perguntam muito. A resposta boa de um adulto não responde: provoca outra questão. Abre porta, inaugura campo; às vezes cansa de tanto andar no campo aberto. É como se as crianças desejassem mais pensar do que saber. Adulto também pergunta: por que as crianças têm medo do escuro?
Crianças têm razão de ter medo do escuro. Primeiro, porque no escuro não se vê. Uma criança deseja ser vista, porque o olhar do outro a constrói. Ela é um ser em andamento, e ver-se no outro tem a força de constatar a própria existência, muito incompleta.
Segundo, porque não ver por fora significa olhar para dentro. E dentro reina aquela confusão que a gente sabe e, principalmente, ignora. A cabeça de uma criança abriga muitas fantasias, e as fantasias, nos casos mais saudáveis, são cheias de fantasmas, bruxas, lobisomens, ogros, monstros, todos assustadores e sem razão.
Terceiro, porque o escuro evoca a noite, a noite traz o sono, o sono cutuca a separação. E a morte. Difícil separar-se, principalmente para quem ainda não se sente seguro nesta vida.
Quarto, porque é saudável ter medo de alguma coisa específica. O medo nos protege do perigo, e nada pode ser mais perigoso do que um perigo sem nome. O escuro, afinal, é algo. O Boi da Cara Preta, também. Gado simpático não acalma ninguém.
Quinto, porque uma criança pode associar o escuro a uma dificuldade diante do aspecto sombrio de quem a cuida. E daí ao infinito, um abraço, porque cada medo de escuro torna-se único, original.
Medo de escuro é natural, saudável até. Em excesso, pode significar que a criança precisa falar, encontrar, abraçar, perguntar, pensar, sentir, expressar.
Ouvir histórias ajuda. Escrever, também.
(1) Do livro A Dança das palavras – poesia narrativa para Pais e Professores, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 164 e 165.
(2) Tradução de Cláudia Cavalcanti.