Raquel Oliveira e Michele Hoeveler
Como acolher e incluir efetivamente as famílias dos nossos alunos e alunas na rotina da escola?
Esta é uma questão que nos acompanha há muito tempo e sobre a qual refletimos sempre, tentando buscar cada vez melhores maneiras de viabilizar sua participação, sem sobrecarregá-las ou comprometer o tempo didático dos professores e do currículo escolar, ao mesmo tempo em que tornando o dia a dia da escola mais prazeroso e produtivo.
Por isso, nossa parceria com as famílias inclui, de um lado, convites para contarem histórias, falarem sobre a área em que atuam, ensinarem alguma receita, ajudarem a cuidar da horta, acompanharem em saídas de campo e compartilharem alguma experiência, entre outras propostas, sempre vinculadas de alguma forma aos estudos que estão sendo desenvolvidos nas turmas. De outro lado, periodicamente, trazemos às famílias algo especialmente interessante produzido por seus(suas) filhos(as), através de Mostras ou do site, informando sobre como o trabalho foi realizado e para quê, bem como realizamos reuniões gerais e/ou de turma, no início do ano letivo e no final de cada trimestre, pelo menos, para informações e aprofundamentos sobre a proposta da escola e retornos sobre o desenvolvimento e as aprendizagens das crianças e turmas. Encontros individuais também são frequentemente organizados, para que cada família e cada professor(a) possa trocar impressões entre si sobre o que acontece com cada aluno(a).
De modo especial as reuniões gerais e de turma com as famílias têm recebido, a cada ano, uma atenção a mais da equipe de professores e coordenadoras da escola. O desafio, nesse caso, é pensar a melhor forma de apresentar o trabalho já realizado para aproximar as famílias do que ainda será desenvolvido com a turma, usando estratégias cada vez mais interessantes e ilustrativas, que permitam e suscitem uma interlocução produtiva com pais e mães.
Às vezes, acreditamos, conseguimos vencer esse desafio, como na reunião de avaliação dos 4ºs anos no final do 2º trimestre, quando repetimos com as famílias – com as devidas adaptações – uma proposta feita com os(as) alunos(as), o que permitiu-lhes vivenciar, compartilhar, refletir e discutir sobre o que acontece na sala de aula.
Foi um trabalho que surgiu de uma ‘assembleia de turma’ – momento quinzenal da rotina, no qual costumam ser discutidos assuntos importantes para as relações entre as crianças –, quando os(as) alunos(as) foram convidados(as) a conversar sobre o tema da valorização da vida, pensando nos problemas que a população da cidade enfrenta atualmente e considerando o momento político e social que vivemos na cidade e no país, de maneira geral. Dentro dessa perspectiva, planejamos uma proposta especial: ler e discutir sobre o poema “Estatuto do Homem”, de Thiago de Mello.
As crianças participaram ativamente da discussão ‘dos decretos e dos artigos poéticos’, relacionando-os com sua vida, com a rotina da sua família e até com fatos históricos do país. Foi importante contextualizar o poema, situando em que momento ele foi escrito e o que acontecia no Brasil naquela época. Alguns alunos e alunas tinham conhecimento do episódio e relacionaram o conteúdo do poema com a ditadura que havia no país a partir do ano de 1964.
Durante a discussão, ouvimos falas e comentários maduros e coerentes, que revelaram o quanto nossas crianças estão se tornando cada dia mais pensantes, críticas e atuantes (*). E, logo depois, receberam outro desafio: pensar outros artigos (ou decretos), considerando sua infância, a convivência e o trabalho na escola. Formaram grupos e elaboraram registros coletivos, criando novos artigos e compartilhando-os com o restante da turma.
Como a proposta nos pareceu relevante, decidimos realizá-la com as famílias na reunião de avaliação do trimestre.
Então, após um momento inicial, de acolhimento e conversa sobre outros assuntos, exploramos em conjunto a leitura do poema, já conhecido por algumas famílias. Em pequenos grupos, conversaram sobre o contexto da época, lembraram alguns acontecimentos importantes, falaram sobre o que sabiam do autor. Em seguida, foram convidadas a refletir sobre cada ‘artigo’ e o que eles significam no nosso dia a dia, além do porquê de eles nos parecerem tão atuais. Destacaram os aspectos mais relevantes e os valores mais preciosos e universais: liberdade, confiança e justiça.
Na sequência, pais e mães também foram convidados(as) a elaborar três artigos, os quais seriam compartilhados com as crianças no dia seguinte e passariam a fazer parte da lista de combinações de cada grupo.
Foi gratificante ver os familiares tão envolvidos na proposta quanto as crianças, discutindo e pensando o conteúdo e a forma, ou seja, o que é importante na infância e como dizer isso de forma poética.
Para finalizar esse momento tão significativo, conversamos sobre a experiência e sobre o quanto foi bonito ver que tiveram o mesmo envolvimento e a mesma seriedade que seus filhos e filhas anteriormente. Concluímos que nós, adultos e adultas, somos exemplos e referências importantes, e que o engajamento das crianças nos parece refletir um pouco do que acontece na dinâmica das suas famílias.
Em aula, retomamos os artigos criados pelas famílias e percebemos que os(as) alunos(as) passaram a ter um olhar mais atento e criterioso nos momentos posteriores de elaboração de regras de convivência e combinados. O permitido e o proibido assumiram outra perspectiva dentro desse olhar: é preciso estabelecer prioridades em busca de um bem comum, que inclui o respeito ao outro, a busca pela felicidade, a responsabilidade e a importância da valorização da vida.
Nota:
(*) Essa postura, nos parece, é favorecida justamente por situações como essas de assembleia, por exemplo (ou de qualquer outra atividade que represente um desafio significativo), em que alunos e alunas são colocados(as) numa posição que lhes permite ir além das condições de sua idade (Vigotsky chama isso de zona de desenvolvimento proximal) e produzir num nível mais avançado do que o fariam em outra situação menos exigente, ou seja, que fazem aparecer suas capacidades potenciais.