Artur Gomes de Morais (*)
Corria o ano da graça de 1985. Minhas filhas, gêmeas, estavam concluindo a série de pré-alfabetização. Como eu já trabalhava com temas de ensino da leitura e afins, ficava atento para os avanços que elas demonstravam no complexo caminho de entender como nossa escrita alfabética funciona…
Eu tinha lido as obras revolucionárias de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, criadoras da teoria da psicogênese da escrita, além de conhecer de perto os estudos de Terezinha Nunes e Lúcia Browne Rego sobre o realismo nominal. Assim, em casa, tinha a clara demonstração de que aquelas autoras tinham razão. Minhas meninas, em agosto, na volta às aulas, já sabiam que TREM era uma palavra pequena, enquanto TE-LE-FO-NE tinha “muitos pedaços” e, portanto, tinha que ser escrita com muitas letras. Maravilhado, em verificar em casa o que eu já tinha confirmado nas pesquisas que fazia com outras crianças, quando escrevia minha dissertação de mestrado, eu via que, sem terem recebido “aulas de alfabetização”, minhas filhas começavam a usar letras com seus valores convencionais e escreviam, por exemplo, I O E para picolé. Um mês depois, uma delas escreveu PETEK para peteca. E eu ficava babando! Feliz da vida, em pensar o quanto elas teriam uma vida escolar tranquila, no ano seguinte, quando ingressassem na turma de alfabetização.
Mas, outras novidades aconteceram. Ainda em outubro, mês em que completaram seis anos, elas combinaram com a avó Neo, ex-professora, de ter umas “aulinhas para aprender a ler”. E tiveram umas oito aulas, durante umas quatro semanas e… começaram a ler ou tentar ler todas as palavras ao seu redor e a escrever muitas outras, sem ajuda. Desse breve “cursinho” surgiu a versão de que a vovó tinha sido quem ensinou as netas a ler e a escrever. E essa versão se tornou oficial.
Olhando para trás, vejo o quanto eu, na época, ficava muito mais preocupado em dizer que elas, minhas filhas, vinham já há algum tempo avançando em seu processo de compreensão e que, consequentemente, não tinha sido um breve cursinho de transmissão e repetição dos nomes, dos traçados e dos sonzinhos das letras que as fez “dar um estalo” da noite para o dia. Eu já era um aguerrido defensor das novas teorias construtivistas. Por isso queria, obstinadamente, mostrar para todos que as crianças pensam, também e muito, ao aprender a ler e a escrever.
Hoje, olhando em retrospecto, me vem outro sentimento, oposto. Sim, vovó Neo ensinou a Marília e a Alice o mistério das letras. Mesmo que as netas já soubessem muitas coisinhas, foi a vovó quem deu a elas o estatuto de crianças sabidas, tão sabidas que já podiam ler! Sim, com aulas que eu, à época via como muito “tradicionais”: foram ensinadas copiando palavras simples, cuidando de escrever com boa caligrafia, mas tudo regado a curiosidade e carinho.
Não tenho dúvida de que foi – e continua sendo – muito prazeroso para minhas filhotas contarem a todo mundo que foi a vovó quem as alfabetizou. Afinal, no mundo dos afetos, isso é bem mais importante que detalhes de teorias científicas.
(*) Professor titular do Centro de Educação da UFPE.