Julio Cesar Walz (2)
Do ponto de vista do bebê também podemos falar em turbulência. Repare só: já na passagem de um estado líquido e delimitado (útero) para um ambiente gasoso, cuja percepção é inicialmente desconfortável, se comparado à vida intrauterina, encontramos as primeiras turbulências. Diferente dos adultos, que podem conversar entre si, pedir conselhos, escutar experiências… os bebês não falam ou expressam claramente seus desconfortos. Ou melhor, eles falam… com gestos, movimentos corporais e choros. E ali estarão seus pais, inicialmente a mãe, para interpretar a necessidade e atender naquilo que for possível. No que for possível quer dizer que, apesar de todos os esforços, tantas e tantas vezes o resultado do cuidado demora a aparecer. E mesmo assim, mesmo com a demora, a interpretação da mãe precisa ocorrer pois ela é a nova delimitação ou o novo útero e pode ser observada no colo, no olhar, na conversa, no seio, cuja presença é tanto a da satisfação pelo alimento como do contato físico e do olhar que situa o novo sujeito na vida.
Pois bem… Disse até aqui que a entrada de um novo ser vivo, um filho/neto/sobrinho/afilhado, ocasiona uma turbulência emocional. Um novo se cria. Tanto como vida como com situações que se processam e independentes de nossa vontade. E resta seguir o caminho que pudermos… Cuidar, falar, correr, acordar, proteger… Mas também se sentir cansado, desanimado e questionando…
Toda essa dinâmica só pode ser conduzida com a eficiência cuidadora quando o adulto se disponibiliza, ou seja, se coloca em situação de troca e de aprendizado com a vida e a experiência emocional que delas advêm. E este é um ingrediente essencial para que se possa ajudar esse novo vivente a prosseguir com menos medo pela precariedade da vida para todos.
Um lembrete: quem é pai e mãe sabe, que ao longo do acompanhamento do desenvolvimento de seu filho, estes pais também têm medos. Inúmeras inseguranças, às vezes pavores inexplicáveis, questionando se são bons pais, as mães acham que seus filhos irão morrer, e assim por diante. Tudo isso faz parte da vida e do processo de relacionamento pais e filhos. O bom nesta hora é o apoio mútuo entre o casal. Como disse, estes medos ou inseguranças fazem parte do processo de desenvolvimento da criança. Não se assustem com isto. Mas claro, quando esta dinâmica for muito intensa e durar um longo tempo a tendência é que a capacidade de cuidado diminua, pelo cansaço, angústia, irritação. Nesta hora é que a gente deve pedir mais ajuda aos avós, amigos etc. Tudo isto faz parte do aprender do cuidador.
Mas do que se trata esse aprender do cuidador? Aprender com o quê? Bem, talvez uma pequena história possa nos ajudar nessa formulação, especialmente na questão da relação com a palavra.
Disse convicto um amigo meu: SER PAI… a gente aprende. Basta escutar um pouco.
Aconteceu num dia qualquer. Daqueles em que tudo parecia ser igual. Trabalho, contas a pagar, funcionário que falta e, por sorte, um amigo que liga para um chopp logo mais. Chegou em casa às nove horas. Blusão na cadeira, sapatos na área de serviço, chinelos para relaxar.
Em seguida, o guri, mais ou menos três anos, correndo com um sorriso e voz, convincente, que ecoa por uns bons segundos:
– Pai… – abraço. – Vamo brincá?
– Daqui a pouco. Deixa o pai descansar e jantar primeiro.
– Ah, pai. De autorama. Tu gosta!
– Mas, filho, eu nem tomei banho ainda…
– Ah, pai. De autorama. Tu gosta muito!
O pai, meio irritado e um pouco comovido, larga um “tá bom”.
– Oba, paiê! Então vem. Vamo, vamo…
E foram. Aos pulos, puxava o pai cansado, que arrastava os chinelos pelo caminho. Chegaram no quarto, desceram a caixa do armário e foram para o chão. Pernas cruzadas. O guri perguntando como se faz. Depois das dicas, o menino se animou e tentou juntar as partes também. Quase pronto. O pai foi até a caixa, pegou as pilhas e os comandos. Ao voltar, viu o guri desmontando a pista completamente. E largou:
– Não, filho. Não é assim.
E voltou a construir o brinquedo que ele, pai, sempre quisera tanto quando criança. E quando ficou pronto, o menino, que já parecia desaforado, recomeçou o desmonte do brinquedo, que, naquelas alturas, já era mais da saudade do pai que dos três anos de vida à sua frente. Com cara de poucos amigos, o pai se levantou. Olhou para o menino e com as mãos para o alto disse em tom enérgico:
– Meu filho! Isto não é brincar de autorama.
Segue-se um breve silêncio, interrompido pela voz aguda e convicta:
– Mas, pai, nós tamo brincando. Eu quero aprender a montar pra quando tu não tá.
A sabedoria, em um silêncio momentâneo, colocou-se entre os dois.
Em seguida, e sem saber por que, meu amigo lembrou o que o avô do menino, seu pai, lhe dissera anos atrás: “Ser pai é isto mesmo. É saber que usamos sapatos grandes em pés pequenos!”
E seguiram brincando na tríplice comunhão de passado, presente e futuro…
Aqui a turbulência foi momentaneamente vencida pela disposição do cuidador para aprender – para aprender com aquele menino que já tinha a experiência da continuidade, da ponte, da ausência e da presença. O pai não se precipitou demasiadamente com suas convicções e pôde colocar-se em interação com o crescimento do filho.
Veja: para ser pai não é necessário compreender tudo o que se passa. Este pai teve:
- sabedoria para falar e
- sabedoria para escutar a resposta.
Ninguém ficou no vazio. A consequência foi que o pai não precisou ficar com a ilusão da culpa (3) para mais tarde compensar com exageros de consumo, por exemplo. E o menino não precisou ficar com medo da raiva do pai.
(1) Trecho do livro Aprendendo a lidar com os medos – A arte de cuidar das crianças (pág. 31 a 35), o qual se encontra esgotado, na quarta edição, disponível somente em ebook/kindle: www.criandoconsciencia.com.br; com autorização do autor, seguiremos publicando neste blog, ao longo de todo o ano, alguns trechos selecionados desse livro, falando sobre os medos infantis e as formas de lidar com eles. Não deixe de acompanhar!
(2) Pai de ex-alunos da Projeto, Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Ciências Médicas/UFRGS – HCPA e autor do livro citado.
(3) GUEDES, P.S.R. e WALZ, J.C. O Sentimento de Culpa. Porto Alegre. Edição do autor, 2ª, 2009.