Celso Gutfreind (**)
“Filhos vêm para ser,
Pais acompanham”.
Paulo Hecker Filho
Os estudos apontam três eixos para legitimar mãe e pai.
O primeiro é jurídico. Sou mãe, porque a lei diz que sim. Em caso de dúvida, é só consultar a certidão de nascimento, lavrada em cartório com firma reconhecida.
O segundo é biológico. Sou pai, porque transmiti os meus genes. Em caso de dúvida, é só fazer o teste de DNA. Neste mundo de tantos paradoxos, eis um caso raro de certeza quase absoluta.
Apesar disso, chega uma hora em que a subjetividade aparece. Aí a ciência reconhece que há um terceiro eixo, este sim decisivo, mesmo incerto: o amoroso.
Não há lei que garanta ser mãe e pai. Afinal, há tanta maternidade extraoficial, tanto cuidado paterno sem documento que o eixo jurídico está longe de ser cabal. Tampouco, a biologia decide com seus genes. Há tanta maternidade adotiva – talvez todas -, que nada do que é orgânico pode assegurar o começo ou a continuidade de uma filiação, sempre mais afeita à poesia do que ao átomo.
O amor, sim. Sou mãe ou pai, porque entre nós se criou um vínculo que fez o que somos: um, dois, carnais, cabais, adjetivo nenhum daria conta. Somos substantivos. É indescritível. Sou pai ou mãe, porque te amo. Há raiz, história, continuidade.
Ser amparado pela lei pode ser fácil. Pela biologia (mais concreta), mais ainda. O amor é mais difícil quando pede um olhar, um colo, um cuidado, um amparo. Quando se dá pronto para dar sem receber ou for imprescindível para deixar de ser. Quando encontra barreiras no confronto entre gerações. A própria ciência num acesso melancólico (mas realista) decretou que ser mãe e pai é impossível (Freud).
Quando vem a raiva, por exemplo. Quando vem o ódio. Quando o filho diz que não te quer, que não és a mãe dele, não és o pai. No fundo não se sabe por que ele diz isso. Talvez porque o ódio tenha mesmo vindo antes do amor que veio dele. Talvez porque o ódio faça parte do amor. Talvez porque o amor, mais frágil do que o ódio, porém mais decisivo do que a lei e a biologia, precise testar o tempo todo. O amor não é seguro. O amor é muito inseguro, embora não exista segurança que não venha dele.
E, provavelmente, porque o filho está vivendo a possibilidade de libertar-se desse amor e ir a outro. Depois, ele volta para partir novamente.
Pode ser esse o desafio máximo de um amor. Banido de incondicionalidade ou narcisismo, continuar amando quem afirma que não ama. E, diante de raiva, ódio, guardar sem garantia o amor que se vai. Amor não é afirmativo nem garantido. É vivido, ou seja, mortal.
Nessa hora não tem lei que ampare ou biologia que console. Também não tem ciência que explique. Então, só com alguma arte e com muito amor.
(*) Do livro Crônica dos Afetos – a Psicanálise no Cotidiano, Ed. Artmed, 2016. Segue o link para a página do livro no site da editora: https://loja.grupoa.com.br/cronica-dos-afetos-p990087
(**) Pai de ex-aluna, psicanalista e escritor, tem colaborado com este blog desde o começo, em maio de 2016. Suas publicações mais recentes são o livro de poemas Tesouro Secundário (Artes e Ecos, 2017), A arte de tratar – por uma psicanálise estética (Artmed, 2018) e A porta do chapéu – crônicas em Paris (Class, 2019).