Celso Gutfreind
“É notável que seja o uso da linguagem que sustente, provisoriamente, a resistência à tese do não ser.”
(Paul Ricoeur)
O bebê é mestre em persistir com o nonsense.
Derrama gritos que ouvido nenhum poderia recolher.
Explode em gestos a séculos do significado mais próximo.
No fundo, sabe que está no país dos horrores e das maravilhas.
Há outros sons que nem chegam ao estatuto de grito. Ou choro.
Emite substâncias propriamente líquidas, umas chegam ao nome sólido, xixi, cocô, baba, outras nem isto.
A manhã, a tarde, a noite avança, e tudo é fragmento, partes desmanteladas no meio do nada, sonhando com o inteiro na cabeça do outro. E, sobretudo, sonhado pela cabeça do outro.
No entanto, a mãe também é mestra em persistir com o significado. Os horrores não a apavoram como aos homens, tampouco as maravilhas como aos deprimidos. Ela está apenas triste. E alegre. E vive seu pesar e seu contentamento, vida acesa pela vida alheia. Quase alheia.
Vendo de longe, não temos certeza da pertinência de suas palavras, mas ela tem. Melhor que isto, porque as entoa e, se falharem na camada do sentido, surge a melodia debaixo, infalível. Mãe é música. Depois, acredita nos gestos que decifra um a um, no mesmo tom, entoando. Nem precisa dizer. E recolhe cada grito derramado e acolhe cada som sem nome.
O bebê persiste no choro e alcança o patamar das grandes angústias, só vistas em leitos psiquiátricos, emergências de hospital geral, algumas farmácias noturnas e fronts de guerra.
A mãe adentra o terrível, mas não arreda enquanto não sair com o seu bebê, sobrevivente e vivente. Do nono ao décimo choro – modo de dizer, são milhares -, ela larga do abraço e, com muito beijo, limpa os líquidos, aquece o chorão.
Qualquer um em seu lugar teria desistido. Mesmo um capitão, mesmo um general. As medalhas não lhes dariam estofo para tamanho desespero e falta de significado. Foram conquistadas no meio da destruição, e esta batalha é mais difícil, porque tem construção.
A mãe não sai do seu lugar, agarra-se às noites – mãe das madrugadas – e conta com a arma do tempo. Sabe que não está sozinha, ainda que se sinta às vezes. Leu Brecht, na vida mesmo, e seu medo tem muita coragem. Ela olha e canta, alheia ao direito de chorar.
Os esboços dos primeiros significados não a surpreendem, porque estava neles quando ainda não eram do bebê. A chegada da linguagem não lhe é estranha, sentiu-a, no corpo, antes de dizer.
Confirma-se o sonho, contornado pelo pesadelo. Sol e sombra, vida e morte, no limite.
A mãe ainda está ali quando aparece, finalmente, a primeira palavra, que ilumina rugas, sombras, olheiras e cava um lugar ao sol do futuro. Agora.
*Do livro A Dança das palavras – poesia narrativa para Pais e Professores, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 50 e 51.
Texto maravilhoso para ser trabalhado desde o Curso Normal.
Parabéns pela escolha. abç gaúcho Sonia
Belíssimo!