Dilan Camargo (**)
Há falta de poesia num mundo sem coração. Rasgamos músculos e estouramos pulmões em academias com exercícios de transpiração para moldar o corpo e nos refletir nos espelhos, mas negligenciamos nos exercícios de inspiração para aperfeiçoar a nossa sensibilidade e nos refletirmos no espelho das nossas almas. Somente da inspiração profunda, estimulada pela poesia, pode vir a energia capaz de nos fazer brilhar nos dias escuros, de nos fazer transcender a um cotidiano monótono em que às vezes a vida se transforma. Somente dela pode vir o encantamento de reinventar a vida e dar significado a cada dia. Uma visão poética da existência é tão necessária para o nosso espírito quanto o alimento é necessário ao corpo. Um “novo dia” é só o que às vezes precisamos, e a sua invocação é a mais fecunda metáfora poética para justificar e celebrar a nossa existência cotidiana.
A crise da palavra literária, já quase extinta, atinge com mais danos a poesia. Ela está sendo substituída cotidianamente por outras linguagens instantâneas, funcionais, interjetivas, com o uso cada vez mais limitado dos vocábulos, copiados e repetidos dos meios audiovisuais e da publicidade. A poesia, essa forma de escrita com arte, é nossa última chance de transcender o dia a dia e de nos aproximarmos da aspiração de plenitude que anima cada humano a viver no dia seguinte.
Se nós adultos já desistimos de uma visão poética da existência, não temos o direito de negá-la às crianças. Além de outros, é um dever estético das famílias e da escola apresentar o mundo poético das palavras para as crianças. Só “a beleza salvará o mundo”, é uma frase célebre de Dostoiévski. Trata-se daquela beleza criada pelas mais variadas formas de arte. E, a primeira delas, é a beleza da palavra poética. Palavra: o som e o signo da imperfeição humana na sua expressão mais perfeita possível. Sem poesia, a linguagem perde a sua significação humana.
Gaston Bachelard, em seu extraordinário livro “A Poética do Devaneio”, refere-se à psicologia do maravilhamento ao afirmar que a poesia é o “ápice de toda alegria estética”.
“Ao maravilhamento acrescenta-se, em poesia, a alegria de falar. A poesia é um dos destinos da palavra. (…) de uma palavra que não se limita a exprimir ideias ou sensações, mas que tenta ter um futuro. Dir-se-ia que a imagem poética, em sua novidade, abre um porvir da linguagem (1) (…) Veremos que certos devaneios poéticos são hipóteses de vidas que alargam a nossa vida dando-nos confiança no universo”. (2)
Para a infância, a idade poética da vida, a presença e a vivência da poesia são indispensáveis. Aquela que já é a atmosfera psicológica natural das crianças precisa ser amparada e estimulada na escola. Para Bachelard, a infância é um mundo que já vem ilustrado, um mundo com as suas cores originais, com suas cores verdadeiras. Daí o tesouro que uma caixa de lápis de cor representa para uma criança. Para ela, o mundo também já vem musicado por uma alegre algaravia de palavras. Um dicionário precisa ser uma caixa de música.
A poesia para crianças é como um jogo com as palavras e a linguagem, que se alimenta de uma dimensão lúdica da vida humana tão importante quanto a racionalidade e a fabricação de objetos, como acentua Johan Huizinga em seu livro “Homo Ludens”.
A poesia é:
“a ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases”. (3)
Um jogo de palavras e uma linguagem transformam-se em linguagem poética quando ultrapassam o seu sentido funcional e cotidiano e transferem novos significados para cada palavra e cada verso. Desse modo, principalmente na poesia para crianças, a criatividade literária do poeta precisa
considerar e contemplar figuras de linguagem e metáforas adequadas ao leitor a quem se dirige. Uma poesia para um leitor criança, para um leitor infantil, precisa saber dirigir-se a esse “leitor implícito”, conforme Peter Hunt em seu livro “Crítica, Teoria e Literatura Infantil”. Diz ele:
“Assim, um texto deve “implicar” um leitor. Ou seja, o tema, a linguagem, os níveis de alusão etc. “escrevem” claramente o nível de leitura”. (4) (…) No entanto, a despeito da instabilidade da infância, o livro para criança pode ser definido em termos do leitor implícito. A partir de uma leitura cuidadosa, ficará claro a quem o livro se destina: quer o livro esteja totalmente do lado da criança, quer favoreça o desenvolvimento dela ou a tenha como alvo direto”. (5)
Essa questão de definir o que é um livro para criança é recorrente no debate teórico e nas práticas de literatura infantil. Acredito que a definição do autor responde às principais dúvidas com esse pressuposto claro e incontroverso. Ele pode orientar com segurança tanto escritores como mediadores, professoras e leitores de poesia infantil. Na minha experiência como autor sei claramente quando estou escrevendo para uma criança, para um jovem ou para um adulto.
NOTAS
(1) BACHELARD, Gaston – A Poética do Devaneio/Ed. Martins Fontes, 1996, pág. 3.
(2) Idem, pág. 8.
(3) HUIZINGA, Johan – Homo Ludens/Ed. Perspectiva, 2008, pág. 147.
(4) HUNT, Peter – Crítica, Teoria e Literatura Infantil/Ed. Cosac Naify, 2010, pág. 79.
(5) Idem, pág. 100.
(*) Este texto é a primeira parte de um ensaio sobre o tema da poesia infantil escrito por Dilan e enviado ao nosso blog. Completaremos sua publicação com outras 5 ou 6 partes, ao longo deste 2º semestre, de forma intercalada com outros textos, de outros autores.
(**) Escritor gaúcho, nascido em Itaqui. Publicou vários livros de poesias e de narrativas para os públicos infantil, juvenil e adulto. Pela Editora Projeto publicou O vampiro Argemiro, 1993, Bamboletras, 1998, BrincRiar, 2007, e Poeplano, 2010, tendo, ainda, participação nos livros Poesia fora da estante, 1995, e Balaio de ideias, 2007. Recebeu os prêmios Açorianos de Literatura Infantil da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Livro do Ano, nas categorias Infantil, Narrativa Curta e Poesia da Associação Gaúcha de Escritores. Teve livros selecionados para o Catálogo de Bolonha (Itália) e outros indicados para o Prêmio Jabuti. Para saber mais sobre o autor: http://www.dilancamargo.com