Dilan Camargo (2 )
O psicopedagogo francês Serge Boiamare em seu pequeno livro “Héroes Lectores – Jóvenes que odiabam leer”, relata a sua experiência docente com jovens que odiavam ler. Ele concluiu que para enfrentar com êxito esse desafio de reconciliar as crianças com a leitura bem como devolver o prazer de ler aos “que não sabem fabricar imagens com as palavras” (3) precisa haver uma prática diária da leitura em voz alta nas escolas, principalmente dos relatos fundadores da nossa cultura. A pobreza espiritual da incapacidade de construir imagens a partir das palavras, tanto gera uma atitude de negação do prazer de ler, como causa danos na capacidade de pensar e de aprender. E, por consequência, empobrece a capacidade de viver e desejar um futuro, uma das causas da evasão escolar, da exclusão social e dos conflitos juvenis que afetam uma preocupante e crescente quantidade de jovens.
O poeta e ensaísta Armindo Trevisan, em seu livro “Ler por dentro”, no ensaio “A Poesia: uma necessidade para o Homem Contemporâneo” afirma que “toda palavra é imagem” e que a criação de imagens com as palavras é a “glória do poeta” (4). Então, já podemos contar com um poderoso aliado que não descansa nunca na busca “de novas imagens para renovar o imaginário das pessoas” (5). Esta é a glória e o ofício do poeta. Por isso, mais adiante Armindo Trevisan estabelece qual é a tarefa do poeta:
A tarefa do poeta consiste em transformar em sugestão o que pensa e o que sente, em concretizar em palavras experiências intelectuais e emotivas. (…) Criar imagens, pela combinação de imagens novas e velhas, dar-lhes novos desdobramentos, deformá-las, para que produzam sentimentos inéditos, é nisso que reside o poder criador do poeta. (6)
Minha aposta máxima é que a poesia pode oferecer às crianças, aos jovens, mas também aos adultos leitores, a necessária capacidade de criar, sentir e vivenciar imagens sobre as incertezas e conflitos do seu mundo subjetivo. Estas imagens abstratas se tornam ferramentas de percepção e de sensibilidade que reestruturam e renovam evolutivamente o mundo do imaginário interior que não pode parar de expandir, assim como o infinito universo exterior. Sem essa habilidade emocional e estética, as crianças não conseguirão romper as amarras com que estão presas aos resíduos arcaicos da mente, e nem se libertarão dos limites atrofiantes da ignorância primária, que impedem o seu florescimento pessoal, a compreensão de si mesmas, dos outros e da natureza.
Em outro ensaio do mesmo livro, “Existirão Clássicos no século XXI?”, Armindo Trevisan chama a atenção para o fato de que um novo tipo de leitor, surgido nas últimas décadas, e que se interessa somente pelo o que é curioso ou exótico:
“… não faz esforço algum para traduzir, para algo visível na sua mente, o elemento abstrato do texto. Esse tipo de leitor interioriza, inconscientemente, o modo de recepção da televisão”. (7)
Na verdade, estes já não podem rigorosamente ser chamados de leitores, mas de expectadores, de consumidores de palavras produzidas pela conversação funcional e homogênea, pelas notícias diárias de jornal, pelas mensagens de publicidade nos diversos meios. Tornam-se também, meros repetidores de slogans, chistes, twitters, e de canções simplórias com uma precária elaboração de versos. Geralmente, afundam na baixa autoestima, depreciam a forma de se expressarem e vulgarizam os seus sentimentos.
Armindo Trevisan chama a atenção também para o que pode ser entendido como déficit linguístico do nosso tempo, que seria a causa para o que ele denomina de “sonegação emocional”. Esta se revelaria na incapacidade das pessoas em não revelar ou serem incapazes de revelar os seus sentimentos. Sem essa percepção e sensibilidade a pessoa reduz drasticamente a sua possibilidade de comunicação com os outros e até mesmo a própria capacidade de se autoconhecer. Ele observa que:
“É aqui que se localiza a sonegação emocional. Ao passo que os sentimentos e emoções são múltiplos e variados, o seu vocabulário – ponte obrigatória de comunicação entre as pessoas – é restrito”. (8)
Este é o grande desafio a ser vencido por pais e educadores e o mais importante processo de restauração da capacidade das crianças em perderem o medo de aprender como também o medo de perder a cópia imperfeita de suas identidades mal compreendidas, às vezes, negadoras de si mesmas.
Assim, alfabetizar e progredir no domínio da leitura somente se torna eficaz e formador através da leitura literária de todas as formas narrativas, mas principalmente da poesia pela capacidade de formar, criar, conceber imagens a partir das palavras que somente ela tem o dom de despertar.
Sugiro que, junto com a leitura, em voz alta, dos relatos clássicos fundadores da nossa civilização, indicados por Serge Boiamare, tais como contos, lendas, fábulas, também é necessário ler poesia, e em voz alta, para e com as crianças e os jovens, como já ressaltamos. E é justamente por meio da poesia, principalmente das metáforas, do ritmo, da sonoridade dos jogos de linguagem, que as palavras podem expressar novos significados semânticos e pessoalizados, proporcionadores da criação de imagens.
Essa profunda sensação de descoberta de um novo sentido, essa surpresa, “A Surpresa de Ser” (9), essa espécie de epifania proporcionada pela palavra poética, origina-se e manifesta-se na subjetividade profunda do ser humano. Ela é uma indispensável via de acesso à compreensão da essência das coisas do mundo interior. Proporciona um momento de encontro entre o pensamento e a imaginação, que ajuda a entender e a superar o medo de viver, o medo de pensar e o medo de aprender. Somente pela superação desses medos é que as crianças e os jovens serão capacitados a dar coerência e sentido à sua existência humana, fazer progressos de aprendizagem, e elaborarem pensamentos.
Notas:
(1) Este texto é a 3ª parte de um ensaio sobre o tema da poesia infantil escrito por Dilan e enviado ao nosso blog. Completaremos sua publicação, ao longo deste 2º semestre, de forma intercalada com outros textos, de outros autores.
(2) Escritor gaúcho, nascido em Itaqui. Publicou vários livros de poesias e de narrativas para os públicos infantil, juvenil e adulto. Pela Editora Projeto publicou O vampiro Argemiro, 1993, Bamboletras, 1998, BrincRiar, 2007, e Poeplano, 2010, tendo, ainda, participação nos livros Poesia fora da estante, 1995, e Balaio de ideias, 2007. Recebeu os prêmios Açorianos de Literatura Infantil da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Livro do Ano, nas categorias Infantil, Narrativa Curta e Poesia da Associação Gaúcha de Escritores. Teve livros selecionados para o Catálogo de Bolonha (Itália) e outros indicados para o Prêmio Jabuti. Para saber mais sobre o autor: http://www.dilancamargo.com
(3) BOIMARE, Serge. Héroes Lectores – Jóvenes que odiabam leer. Editorial UV de la Universidad de Valaparíso. 2016, p. 19.
(4) TREVISAN, Armindo. Ler por Dentro. Pradense. 2010. p. 112.
(5) . p. 112.
(6) . p. 112.
(7) . p. 122.
(8) . p. 123.
(9) Título de um livro de poemas de Armindo Trevisan.