Fernanda Lantz (*)
Colaboração de Caroline Chequim (**)
Dia 30 de setembro, com o Decreto 10.502, foi instituída pelo Governo Federal a “nova” Política Nacional de Educação Especial que se diz “Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. Política essa na qual percebe-se um cunho ideológico e que representa um retrocesso de pelo menos 30 anos no campo da Educação Especial.
O decreto que incentiva a existência de salas e escolas especiais para crianças com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, desobriga as escolas comuns a matricular esses(as) alunos(as), abrindo brechas para que os(as) encaminhem a escolas especiais e instituições. É cruel, pois além de violar o direito do acesso à educação nas escolas comuns, o decreto é travestido de acolhimento, dando às famílias uma falsa sensação de direito à escolha, já que há “estudantes que não estão se beneficiando das classes comuns”, segundo o Ministro da Educação Milton Ribeiro. Essa política apresenta um modelo capacitista que julga razoável segregar as pessoas com deficiência como forma de protegê-las do preconceito. Modelo já experimentado no nosso país das décadas de 60 a 90, centrado nas dificuldades dos(as) alunos(as) e atribuindo o fracasso escolar exclusivamente à deficiência, sem olhar para as barreiras físicas e atitudinais da escola e da sociedade que não acolhe as diferenças.
As escolas e instituições de educação especial nunca deixaram de existir e uma pequena parcela de estudantes pode se beneficiar da escolarização nesses espaços. Mas a efetivação dessa política fere inclusive a autonomia dessas poucas escolas, que, atuam no apoio à inclusão de alunos(as) na escola regular, na medida em que são capacitadas a utilizar critérios que permitem orientar essas escolas a reorganizarem suas estratégias para que o(a) aluno(a) possa se beneficiar do ensino regular. Diante dessa nova política, poderão continuar atuando dessa maneira?
Sabemos que na prática temos muito a caminhar nesse sentido, e, sim, existem casos de sucesso e de fracasso dentro de escolas ditas inclusivas, mas estamos em movimento. No entanto, é simplista demais pensarmos que a solução seriam classes e professores(as) especializados(as) que pudessem atender demandas tão específicas, em outro local. Não é certo avaliarmos que a inclusão não funciona se o investimento adequado ainda não foi realizado. É, sim, desafiador esse processo e é fundamental investimentos que possam sanar barreiras físicas de acesso aos diferentes espaços da escola, oferecer formação de professores(as), investir em tecnologia assistiva, ampliar a oferta de AEE (Atendimento Educacional Especializado) e trabalhar junto às famílias, garantindo não só o acesso, como a permanência com qualidade de aprendizagem aos educandos. A inclusão é processo, é preciso ser entendida como um trabalho sistêmico de gestores(as) inclusivos(as), professoras(es) do AEE e demais educadores(as), que a entendam como uma pauta de todos(as).
Um projeto de sociedade passa por um projeto de educação. E qual modelo de sociedade queremos? Se desejamos uma sociedade mais justa, igualitária e humanizada é fundamental acolhermos as diferenças. Esse aprendizado só é possível no dia a dia, nos diferentes espaços da sociedade. A escola aberta a todos(as) não beneficia apenas os(as) alunos(as) com deficiência, mas a todos(as) que passam a conviver com a diversidade.
Essa política que centra a educação inclusiva na educação especial, fragiliza o debate e até a responsabilização das escolas. Enquanto deveríamos estar discutindo conceitos e práticas de normatização e capacitismo, e pensando em como olhar para o efeito das práticas que temos oferecido, o que está se propondo é a retomada de uma velha política com nova roupagem, numa perspectiva que põe barreiras na caminhada à inclusão e altera investimento dos Estados – das pastas da Educação, Assistência Social e Saúde para ONGS e Instituições -, deixando a escola pública desassistida.
O decreto ainda divide famílias e escolas, colocando-as em campos opostos e antagônicos. Essa polarização, que tem sido regra em diversos campos nos últimos tempos, desvia nossa atenção e nos afasta da luta e conquista do que nos é comum. Temos muito a avançar e só avançamos quando estamos juntos, fortalecidos
uns nos outros. A educação inclusiva é direito de todos. Que sigamos lutando por nenhum direito a menos e para que ninguém fique para trás.
(*) Mãe de alunos e professora da Sala de Recursos da Escola Projeto e da Rede Municipal de Porto Alegre.
(**) Professora da Rede Municipal de Porto Alegre.