Dilan Camargo (2)
Dentre as diferentes formas e possibilidades da poesia para crianças ser lida e vivenciada em sala de aula, destacamos:
1 – Aproximação e interação da linguagem verbal com a não-verbal, da escrita com a corporalidade
As crianças apreciam a mímica, a gesticulação. Acompanham e representam com gestos, trejeitos e caretas os sentimentos, o ritmo e as surpresas sugeridas pela leitura e audição de um texto poético. A imaginação da poesia e a ação do corpo se integram e se complementam na descoberta mais intensa da sensibilidade infantil. É preciso estimular e desenvolver a capacidade de expressão corporal, que já é espontânea nas crianças, e que no processo de leitura e recitação de um texto literário não pode ser reduzida a uma prática de “educação física”, mas de educação dos cinco sentidos, das emoções latentes. Não se trata de teatralizar uma história ou uma lenda, comum na narrativa, mas de recitar, de reinventar a declamação, que se tornou tão empobrecida pela leitura mecânica. A leitura não-verbal é aquela que se faz com expressões do rosto, com movimentos interpretativos de “cabeça, tronco e membros”, próximos da pantomima e da dança, sem riscos acrobáticos.
2 – Valorização qualificada das rimas
O processo de alfabetização, da apropriação cognitiva e estética da língua nacional inicia-se pela oralidade, no mundo das palavras ouvidas, aprendidas e pronunciadas na convivência familiar e social das crianças. Estas ainda não conhecem as letras e não sabem ler palavras escritas, mas já sabem ler objetos, lugares, sentimentos e emoções. Pela oralidade, são apresentadas ao som das palavras, aos fonemas. Adquirem um vocabulário, que poderá ser limitado ou expandido, de acordo com o seu meio familiar e o seu acesso qualificado à escolaridade.
A poesia, através das rimas, proporciona às crianças o que alguns chamam de consciência fonológica, com a repetição de um som, de uma sílaba sonora, ao final de dois ou mais versos. Assim, é preciso saber escolher textos poéticos que não abusem de rimas pobres, aquelas feitas com palavras de excessiva obviedade sonora. E que também os poemas não se utilizem da rima pela rima, sem a equivalência poética entre os versos. Ainda é importante saber selecionar poesias com rimas ricas, poucas e raras, mas que surpreendam o leitor.
Finalmente, não se pode deixar de atentar para as rimas em ão e inho, que, se usadas abusivamente, desqualificam a linguagem e subestimam o ouvido musical das crianças. Na poesia para crianças não pode faltar a alegria da fala, da celebração da palavra lúdica. Entretanto, é interessante não esquecermos que somente na língua portuguesa pode-se fazer rimas em “ão”, como em algumas parlendas. De qualquer modo, é apenas em poemas de autores com domínio criativo da técnica de rimar e de versejar que elas podem ser encontradas.
3 – Exercitar a prática da releitura e da escrita da poesia
A poesia precisa ser lida mais de uma vez porque as sugestões das metáforas, a significação das palavras e os ecos das suas sonoridades sempre revelarão novas hipóteses de percepção e de expansão simbólica. São necessários exercícios lúdicos de diferentes tipos de leitura de poesia, estimulando as crianças a refazer, reescrever, recriar e criar textos poéticos em diálogo com o poema de referência. Isso significa explorar as possibilidades de estabelecer um novo “contrato linguístico”, aberto tanto para as mais variadas leituras, quanto para as surpresas da releitura e da apropriação da escrita de poesia.
E por que não se estimula e se promove também a escrita de poemas além de redações nas salas de aula? Essa é uma das limitações ao desenvolvimento da escrita criativa nas escolas. Os alunos são direcionados e treinados unicamente para uma redação de vestibular. Essa prática está criando graves distorções na aprendizagem da escrita entre os estudantes, tornando-a uniforme e sem
características pessoais. É quase uma burocratização da linguagem, reduzindo-a a uma única fórmula e função: passar no vestibular.
Só a poesia liberta a imaginação e confere autenticidade e beleza ao ato de escrever, tornando-o arte e vida.
4 – Poesia precisa ser lida em voz alta
A leitura em voz alta, tanto individual como em grupo, e até com todos os alunos de uma sala de aula, é um dos meios mais gratificantes para estimular, propiciar e promover o gosto pela poesia. A leitura em voz alta é uma experiência lúdica que vai além de um aprendizado curricular porque não pode e nem deve ser aferido através de um sistema de avaliação quantitativo. Não se pode dar nota pela leitura ou a escrita de um poema.
Esse recurso é apropriado para descobrir, junto com as crianças, a melodia e o ritmo da leitura, o que pode revelar os vários significados de um texto. Isso facilitará, depois, a apropriação da chamada “leitura silenciosa”, quando, então, se forma plenamente um leitor. Através da leitura em voz alta o texto é recriado pelo leitor, porque é assim que este se apossa integralmente dele e o lê na sua própria interpretação. Ao dizê-lo e ao ouvir-se dizer, a criança vai desfrutar para sempre do poema porque ele continuará ressoando na sua memória estética.
Essa forma de apropriação da poesia faz a criança fruir a dimensão lúdica, de jogo, uma das essências da poesia, que é mais primordial do que a cultura, segundo Johan Huizina, pois essa atividade se realiza:
“…fora da esfera da necessidade e ou da utilidade material. O ambiente em que se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo (…) A ação é acompanhada por um sentimento de exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e distensão”. (3)
A leitura em voz alta na sala de aula pode ser feita de forma participativa, com todos os alunos lendo juntos, tanto os ainda não alfabetizados como os em fase de alfabetização e, principalmente, os já leitores. Essa é uma forma lúdica e prazerosa, que depende muito da dedicação de professores, bibliotecários ou mediadores de leitura para envolver e encantar a classe. Simplesmente o mediador vai lendo o poema, verso por verso, com entonação especial e ritmada, seguido da repetição de cada verso pelos alunos. Todos descobrem que uma poesia tem música, melodia, cadência e expressão.
5 – A memorização de poesias
O aprender de cor (do latim cordis/coração), o decorar, a memorização, já foram considerados como uma má prática de aprendizado e quase banidos dos sistemas de ensino. Foram até mesmo estigmatizados sob a denominação pejorativa de “decoreba”. O próprio ato de ensinar também sofreu muitos questionamentos e contestações de algumas teorias pedagógicas. Porém, quero acreditar que poucos teóricos, psicopedagogos, filósofos, pedagogos, sejam contrários ao ato lúdico de decorar e de memorizar uma poesia. Chega a ser um prodígio ouvir uma criança recitar, dizer, declamar uma poesia. Presenciar esse momento não me aconteceu uma ou duas vezes, mas várias, até mesmo com crianças de educação infantil ainda não alfabetizadas. Por essa experiência, permito-me transgredir esses preceitos e sugerir que as crianças sejam estimuladas a decorar uma poesia, naturalmente com número de versos e de estrofes, bem como com linguagem adequados à sua percepção e dignidade humana.
O tipo de poesia que proporciona uma experiência literária, lúdica e afetiva, é a quadrinha. A clássica e velha quadrinha – com seus versos em redondilha maior, recitados nas cantigas de roda, em que as crianças formam um círculo, conectadas por uma rede afetiva, sensível e alegre, ao se darem as mãos para brincar – nunca pode ser esquecida.
É preciso reintroduzir a leitura e a escrita de quadrinhas e o aprendizado transformador dos versos de sete pés, a redondilha maior. Quem memoriza uma poesia implanta uma célula poética na sua imaginação que nunca vai parar de se multiplicar.
Nota Final
O aprendizado de ler palavras é um dos mais complexos e um dos mais determinantes para o desenvolvimento da autonomia da consciência racional e emocional do ser humano. Se o próprio ato de se alimentar, vital para a sobrevivência biológica precisa ser ensinado às crianças por um adulto mediador, imagine-se os esforços e a dedicação que precisam ser aplicados para ensinar uma criança a ler textos escritos, e, principalmente, a ler textos literários, como uma poesia. Mas, apesar desse desafio, o que deve ser motivo de entusiasmo e de confiança é que até no próprio ato de ensinar a comer as mães se utilizam de metáforas, transformando uma colher num aviãozinho. Ensinar a comer é, assim, também um ato poético.
Então, vamos ler e viver poesia em sala de aula e na biblioteca, e convidar as famílias para que a leiam em casa com os seus filhos. Todos os educadores, pais e professores, estão seriamente desafiados a equilibrar e harmonizar a educação da nova geração de crianças, que está crescendo em meio a computadores, internet e videogames, com a indispensável leitura literária, com o mundo das palavras humanas, das palavras mágicas escritas e lidas com arte. Elas recebem informações e fazem conexões de sentidos diferentes dos adultos e correm o risco de se tornarem emocionalmente neutras diante das linguagens digitais de aparelhos e circuitos eletrônicos. E a neutralidade afetiva leva à indiferença social, à perda da empatia, ao medo do outro e à intolerância.
A poesia ainda é o refúgio e o lugar da palavra humana carregada de significados, de sentimentos e de conteúdo ético. As novas crenças de uma sociedade audiovisual querem nos convencer que uma imagem vale mais do que mil palavras. De que palavras? Ora, nenhuma imagem, seja qual for, será capaz de substituir as três palavras mais esperadas de uma declaração de amor: “eu te amo”. A palavra poética é o nosso segundo nascimento. Somente ela carrega em si a beleza de falar, o compromisso com a verdade do coração.
Todos os que nascem já trazem ao mundo uma palavra nova representada no seu próprio nome. As crianças salvarão a poesia!
Notas:
(1) Esta é a 6ª e última parte de um ensaio sobre o tema da poesia infantil escrito por Dilan e enviado ao nosso blog.
(2) Escritor gaúcho, nascido em Itaqui. Publicou vários livros de poesias e de narrativas para os públicos infantil, juvenil e adulto. Pela Editora Projeto publicou O vampiro Argemiro, 1993, Bamboletras, 1998, BrincRiar, 2007, e Poeplano, 2010, tendo, ainda, participação nos livros Poesia fora da estante, 1995, e Balaio de ideias, 2007. Recebeu os prêmios Açorianos de Literatura Infantil da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Livro do Ano, nas categorias Infantil, Narrativa Curta e Poesia da Associação Gaúcha de Escritores. Teve livros selecionados para o Catálogo de Bolonha (Itália) e outros indicados para o Prêmio Jabuti. Para saber mais sobre o autor: http://www.dilancamargo.com
(3) HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Perspectiva, 2008, pág. 147.