Cristine Zancani (2)
Ano passado, na escola (3), o quinto ano leu Frankenstein, de Mary Shelley (4). Leram alternando leitura compartilhada e individual. Realizando sempre uma reflexão (conjunta ou individual) sobre o que liam. Com a escola em casa, deu pra acompanhar mais de perto esse processo.
O livro abre a porta para discussões profundas sobre cuidado, bem, mal, abandono, aparência x essência, monstruosidade gerada pelo social, poder da leitura, preconceito etc. Nenhuma discussão é rasa e/ou apresenta respostas prontas.
Os debates das crianças foram lindos. Claro que também entrou em questão a conversa sobre Mary Shelley.
O cuidado da escola no estudo de mulheres é incrível. Quando estudaram grafite, também abordaram as mulheres do grafite, e está aí a Clara grafitando todas as paredes de casa.
Bem, ontem fizemos uma noite das meninas – que é escolher algum programa só nosso. Vimos o filme Mary Shelley. Eu já tinha visto. Revi com ela.
Desde a primeira aparição do escritor por quem a Mary Shelley se apaixona, Clara implicou com ele. “Não acredito que ela vai gostar desse cara todo bonitinho, que se acha o máximo”, e assim foi indo. A cada aparição dele, eu ria muito com os comentários que ela fazia. Fato é que o cara vai se revelando um lixo, numa relação super tóxica. MS vai perdoando, perdoando, perdoando ele até o fim. No final do filme, ele se “redime”, explicando publicamente que o livro (que teve sua primeira edição lançada anonimamente – porque não era nada atrativo ter sido escrito por uma mulher) havia sido escrito por ela, não por ele (como desconfiavam, na época).
Isso não comoveu em nada a Clara. “Ele não fez mais do que a obrigação dele”. “Eu não acredito que ela vai perdoar ele outra vez”. E assim foi. Eles foram felizes e infelizes até a morte dele. Ela não se envolveu mais com ninguém. Por amor ou por trauma…
O posicionamento da Clara é o posicionamento de uma geração que parte muitos passos na frente, quando o assunto é feminismo e masculinidade. Quando essas questões estão em pauta em casa e na escola (como estiveram na Projeto), a gente cria não só uma geração de meninas que não vai naturalizar o que jamais foi natural; mas também meninos que aprendem a admirar mulheres fortes e a se relacionar de modo saudável com as pressões sociais da masculinidade. O caminho – que é longo – fica bem mais curto.
(1) Texto escrito no início de fevereiro de 2021.
(2) Cristine é mãe da ex-aluna Clara (5º ano/2020), doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS e integra projetos de formação de leitores.
(3) Trata-se da Escola Projeto, onde Clara estudou até o ano passado.
(4) Edição da Cia das Letras, contada por Ruy Castro e ilustrada por Odilon Moraes.