Beth Baldi (1)
Um dos objetivos explícitos de nossa escola em relação aos alunos e alunas é: “desenvolver a autonomia intelectual e moral, assim como a capacidade de cooperação, respeito e solidariedade”. Tenho pensado muito nisso, nestes tempos tão difíceis que vivemos, em que se tem confundido tanto autonomia com anomia e, por consequência, democracia com liberdade irresponsável.
Fui buscar, então, algo que pudesse nos fazer refletir mais profundamente sobre essa questão, na escola e fora dela, e sobre suas implicações para a educação de nossas crianças e jovens. E encontrei, no documento que fundamenta a proposta da Projeto, um texto interessante, com ideias organizadas a partir de diferentes teóricos que viemos estudando ao longo de nossa trajetória (2).
Compartilho-o aqui, na esperança de contribuir para ampliarmos nossas reflexões, propondo que pensemos as ideias que ele traz para além do ambiente da escola, vislumbrando-as no contexto da sociedade em que vivemos e, quem sabe, nos perguntando o que ainda temos de aprender, mesmo como adultos(as), ou o que ainda temos de viver para nos mostrarmos autônomos(as) de fato como cidadãos(ãs).
Limites, relacionamentos e autonomia (3)
O limite faz parte da existência humana, da condição de se viver em sociedade. Para conviver, crescer e aprender a criança precisa de limites, de marcas que demonstrem até onde ela pode ir com seus ímpetos de curiosidade, espírito de observação e indagações sobre o mundo. O limite é uma forma de demonstrar o quanto se acredita na capacidade de superação das frustrações como meio de crescimento e aprendizagem. Se não impusermos limites por medo de introduzir frustrações na vida das crianças, estaremos condenando-as a serem pessoas incapazes de conviver, de considerar pontos de vista divergentes e, por tudo isso, incapazes de aprender. O limite é uma forma de balizar o comportamento e refrear impulsos, que podem ser de vida (construção) ou de morte (destruição). Quando não há limite os impulsos, desordenados e sem um equilíbrio, causam insegurança, geram ansiedade e são capazes de alterar o desenvolvimento das estruturas de pensamento, pois não permitem o estabelecimento de relações estáveis, regulares e encadeadas.
Por acreditar e perceber a importância dos limites na aprendizagem das crianças, a escola se organiza a fim de trabalhar para sua construção, introduzindo atividades em que a necessidade de descentração esteja presente de acordo com o nível de desenvolvimento, a faixa etária e os objetivos de cada série. Nesse trabalho surge a necessidade de construir regras coletivas que garantam o desenvolvimento dos alunos e alunas. Existem regras, porém, que fazem parte de um contexto mais amplo de escola e já estão estabelecidas. São as regras de convivência que garantem a estabilidade emocional e social das crianças no grupo. Além disso, existem também as regras que emergem dos jogos e atividades grupais ou individuais que são construídas sistematicamente pelas crianças.
Para que elas possam ir progressivamente avançando em seu desenvolvimento sociomoral é necessário, em determinado momento, lançar mão de sanções que garantam a apropriação de critérios de comportamento, necessários para o bom andamento das atividades na escola. Assim, através de combinações explicitadas diariamente, cobradas e requisitadas por todos os segmentos da comunidade escolar é que vamos traçando metas e objetivos, superando dificuldades e construindo novos conhecimentos. A constância das ações e atitudes, nesse caso, é determinante para o alcance dos objetivos.
O objetivo da educação é a autonomia. Autonomia aqui entendida como a capacidade de governar-se a si mesmo, que é o contrário de heteronomia, como necessidade de ser governado por outra pessoa. “A autonomia como finalidade da educação requer que as crianças não sejam levadas a dizer coisas nas quais não acreditem com sinceridade” (Kamii, Constance, 1990). Assim, o que se quer é que as crianças sejam ensinadas a refletir em todas as perspectivas – lógica, moral, crítica etc. -, não simplesmente repetindo, de forma heterônoma, o que acham que o adulto quer ouvir ou ver.
Além disso, quando se fala na autonomia, como objetivo da educação, este “governar-se a si mesmo” não está isolado e descontextualizado, mas constitui-se em um ser capaz de pensar por si mesmo, assumindo suas próprias ideias e discutindo-as ou confrontando-as com as ideias do outro, do grupo, na busca do que seja “o melhor para todos”.
Por isso, não se forma indivíduos autônomos sem limites e sanções que levem a constantes descentrações e reflexões, com revisão dos comportamentos inadequados, se for o caso. Também são necessárias, para desenvolver a autonomia, situações em que possam praticar a cooperação, ou seja, em que todos estejam envolvidos na construção ou elaboração de algo que seja bom para todos.
Partindo desse pensamento chega-se à questão da competitividade. A competitividade é uma relação que se estabelece no grupo sempre que determinados valores como cooperação, solidariedade e colaboração não são explicitamente trabalhados nem vivenciados no cotidiano escolar. Para que isso não ocorra é necessário que a escola tome uma posição definida em relação a esse aspecto, salientando situações de coleguismo, colaboração entre os colegas e oportunizando ações coletivas que garantam o desenvolvimento de relações de igualdade, solidárias, que repudiem atitudes de competição entre as crianças, demonstrando com isso o quanto essas atitudes mais coletivas revertem para o bem-estar do grupo como um todo.
Ou seja, busca-se um clima de trabalho propício para o desenvolvimento: proximidade, afeto, autoridade e organização na medida certa, com as regras da escola sendo explicadas e não simplesmente impostas aos alunos, havendo possibilidade de construí-las com eles, dependendo do caso, em termos de combinações sobre como algo vai funcionar. Mas sempre com muita atenção para o princípio de que, construídas ou explicadas, o cumprimento das regras é fundamental e, para nós, é um conteúdo a ser também trabalhado e avaliado.
Nesse sentido, as regras de convivências têm uma atenção especial cotidiana, acreditando-se que são uma construção gradual no sentido da autonomia: formas de tratamento entre as pessoas, encaminhamento de situações de conflito etc., não permitindo-se agressões físicas ou verbais ou qualquer forma de desrespeito ao outro, e incentivando e trabalhando a solidariedade e a cooperação como essenciais para se obter um clima de convivência e trabalho tranquilo na sala de aula, organizado e adequado a cada tipo de proposta.
Verdade que não é tão simples… Mais fácil é usar máscara e higienizar as mãos com frequência, certo? Nem tanto! Se assim fosse, por que tantas pessoas não o fazem? Por que isso seria tão difícil para tanta gente, então? Por que ser capaz de pensar por si mesmo exige tanto? Já imaginou, então, fazer isso pensando no coletivo? Espero que essas e outras tantas perguntas tenham podido emergir em suas reflexões, na busca de entendimentos sobre o atual momento e sobre as ações de diferentes pessoas com quem convivemos, ou desse grupo chamado de “humanidade” a que pertencemos. Na Projeto, acreditamos que seja possível – e que vale a pena! – evoluir nesse sentido, embora saibamos que a caminhada é árdua e longa.
(1) Diretora pedagógica da Escola Projeto.
(2) Teóricos que tomamos como referências na proposta da escola na área afetivo-social: Jean PIAGET, Constance KAMII, Yves de La TAILLE, L. S. VYGOTSKY, Barry J. WADSWORTH e Tania ZAGURY.
(3) Texto retirado da Proposta Pedagógica da Escola Projeto.