Celso Gutfreind (**)
Difícil mapear o começo da vida humana, embora estejamos fazendo muitos progressos neste quesito e em tantos outros. Em seguida, mapeamos um pouco, a partir de alguma verbalização quase inconteste dos corpos. Há depoente, testemunha e uma interpretação que chega a parecer absoluta. E, crianças ainda pequenas, já estamos cindidos, divididos, dissociados afetivamente. Clivados, em linguagem técnica. Então, as histórias infantis caem como uma luva para as vozes que contam aos nossos crédulos ouvidos. Elas nos representam, na certeza entre o bem e o mal, bruxas e fadas, ogros e príncipes. É o tempo dos heróis e das idealizações. É breve, como qualquer tempo da realidade.
Dura pouco, portanto, e logo nos fragmentará em partes, pois virão os senões, as dúvidas, as nuanças, os paradoxos. Deus, para muitos, poderá aliviar. Mas, se alguma verdade for mantida, não evitará as relativizações. O malogro, para Sartre. O fim do ideal, para Freud. A coisa em si, para Kant. O desamparo, para Winnicott. A dor, para todos nós, novamente condenados aos pedaços e alçados na luta por alguma integração, que virá transitória sob a forma de uma canção, de um amor ou algum Deus.
Mas dói tanto que a tentação do retorno é permanente. A maioria cai nela. E tenta voltar ao idílio, exagerando o papel desse Deus ou de outros. E, sobretudo, dos homens. Aqui voltamos a cindir, dividir, dissociar, no fértil terreno da polarização. Retoma-se a simplicidade do bem e do mal. A salvação já é possível e mesmo rústica. Acreditamos. Acreditamos piamente que pode não doer e, fora de nós, alguém sabe o caminho. A fada. O príncipe. O ideal. O candidato à permanência que não há. Então, sentamo-nos no conforto da espera, de onde virá o Messias. E olhamos para a direita. E olhamos para a esquerda. E o olho vê com certeza o que já estava dentro dele, desde o princípio.
Enquanto isso, a estrada segue indo e vindo, sem respostas para tanta pergunta. E raramente alguém arrisca um pensamento pessoal ou alheio ao que, longe do mito, poderia fazer toda a diferença, mesmo sem curar a parte do desamparo.
(*) Texto especialmente escrito para o nosso blog. Obrigada, Celso!!!
(**) Pai de ex-aluna da escola, psicanalista e escritor.