André Klaudat (*)
Em criança, me mudei de cidade quando cheguei ao que era então o Segundo Grau. Em Novo Hamburgo, no primeiro ano, alguns dos meus novos colegas, quase todos guris, riam do meu sotaque que pouco chiava o “de” final de “cidade”, ao invés marcava-o como “dii”. Em “molho” era mais pra “moliio”, eles me imitavam caçoando. Isso me incomodava e magoava. Até o terceiro ano passou, devo ter me aproximado do falar hamburguês, e acabaram por se tornar meus amigos.
Algo diferente aconteceu com a primeira vereadora negra de Curitiba, Ana Carolina Dartora, empossada em 2021. Ela conta numa entrevista que foi muito bem recebida pelos colegas vereadores da Câmara, e um deles dizia entender o que ela teria passado porque ele próprio, descendente de italianos, também sofreu muito com preconceitos e exclusões. Ana Carolina relatou o episódio de modo divertido, porque é bem claro que bullying de novatos, ou até de “estrangeiros” internos, não é a mesma coisa que sofrer racismo.
Foi disso que me lembrei quando a artista convidada da escola, a Sônia Rosa, foi enfática sobre quanto machucam pequenos sinais, falas e gestos que depreciam a cor da pele e o cabelo enroladinho de negras e negros. Ela disse que assim são ofendidas não só as crianças, mas também todas as suas relações de afeto: seus pais, avós, tias, amigos, todos(as) os(as) negros(as) com quem essas crianças vivem as suas vidas. Ela também foi contundente em relação ao não cumprimento da lei 10.639 de 2003, que exige a presença no currículo das escolas de matérias sobre a contribuição dos(as) negros(as) brasileiros(as) e da cultura de vários países africanos para o conhecimento, a história, a economia, as artes, a cultura, enfim, para o desenvolvimento da nação brasileira. A atenção que o Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, por exemplo, está recebendo na nossa escola neste momento parece não ser algo comum. Esse é claramente um caso em que a presença dos estudos de e sobre os(as) negros(as) poderá contribuir muito para o enfraquecimento do racismo contra eles. Numa comparação, não é apenas Machado de Assis e Lima Barreto, mas também Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Giovani Martins e Jeferson Tenório. Mais, simplesmente mais, em quantidade poderá ajudar a produzir o devido reconhecimento há muito deliberadamente apagado da contribuição referida. E assim podemos atender ao Tinga, jogador de futebol, que diz que não é só de paz que precisamos, mas fundamentalmente de respeito a todas e todos.
Uma amiga minha relata que, quando pequena – hoje ela tem 50 anos -, não lhe parecia que nutria ódio ou desprezo pelos(as) negros(as), e que era inevitavelmente colorada numa família toda colorada. Ela se lembra distintamente, no entanto, do dia em que descobriu que o Saci Pererê era o mascote do Inter, e o Mosqueteiro o do Grêmio: ato contínuo, deixou de torcer pelo Inter e anunciou a todos que tinha passado a ser gremista. Com orgulho, o pai riu da filha. Essa minha amiga hoje em dia pede atenção a duas coisas: embora não nasçamos racistas, logo aprendemos a ser; e declarações de que não somos racistas por não sentirmos a presença de um ódio ou desprezo pelos(as) negros(as) em nossos corações não são fiáveis, porque essa “evidência” não prova a inexistência de racismo. Pois racismo não é só não sentir aquele ódio ou desprezo. Há algumas décadas, renegar veementemente o supremacismo branco era visto como suficiente para a ausência de racismo por parte de liberais brancos(as) de classe média, que se confortavam com essa convicção. Hoje sabemos que a ideologia de ser branco(a) pode se apresentar estruturalmente também, então ela já passou por aquela que foi uma fase do seu “desenvolvimento”, formado por suas frequentes adaptações a novos tempos.
Esses dias um amigo me aconselhou a procurar propiciar aos meus filhos uma educação no exterior, ao menos por um período. A razão principal, convincente, foi: é pra eles aprenderem a estudar sério e entenderem corretamente o que é e para que serve a educação que todo cidadão de um país deveria receber. Ele me disse que estudar no Brasil é, na maioria das vezes, um oba-oba. Ao considerar que jovens brancos(as) das classes privilegiadas podem prestar 4-5 vestibulares, após todos esses anos em cursinhos pré-vestibulares, não sei se posso discordar do meu amigo quanto a esse ponto. Apesar da sua boa intenção, fiquei pensado em outra coisa. O mero conselho é bastante típico e tem relação com outro fenômeno: a convicção de que certo tipo de experiência – uma passagem pelo exterior – pode, mais do que a mera escolarização formal local, ser um meio de garantir um lugar ao sol no nosso país. A pergunta que me faço: negros(as) com sólidas formações locais têm as mesmas chances que aqueles(as) que estudaram fora? Será que é meramente uma questão de currículo? Milton Santos, o renomado geógrafo brasileiro, nos contou, a propósito, das dificuldades de ser negro e intelectual no país.
Entre nós o que é uma garantia de reprodução do racismo é um ethos, uma solidariedade de raça, um humor e uma compreensão faceira e complacente dos(as) brancos(as) para consigo – a branquitude – em muitíssimos ambientes e relações, até na sala de aula na mais tenra idade. Essa perspectiva de pensamento e comportamento consegue, não surpreendentemente, até mesmo se travestir numa acusação aparentemente apenas defensiva: qualquer mudança no status quo é tomada como a ameaça de negros e negras às suas prerrogativas “equânimes” dos(as) brancos(as), quando não à sobrevivência da própria raça. Poderíamos desejar abolir a branquitude, como já foi abolido na história o ser etrusco ou o ser prussiano. Mas, como disse a Toni Morrison, o mundo não deixará agora de ser racializado por decreto. Ser branco(a) foi uma invenção, a escravização dos(as) negros(as) africanos(as) para as Índias Ocidentais Britânicas (como até hoje chamam as ilhas do Caribe) foi primeiramente “justificada” por eles(as) não serem cristãos(ãs), só depois é que veio a “justificação” de que “eram negros(as)”. O que fazer com os(as) brancos(as)? Acordar de manhã e se declarar “não branco(a)” não ajudará ninguém. Por isso, o rapper Emicida diz: “eu não sou o alvo dos racistas, eu sou o pesadelo dos racistas”. Ora, porque ser branco(a) não é um fato, é uma ideia. Mas não é uma mera ideia, é todo um pacote de coisas – infelizmente muito presentes e muito danosas ainda -, então a solução é trabalhar para mudar nossas cabeças. Esse trabalho passa por se voltar para fora, deixar de olhar para o próprio umbigo e ver, por exemplo, o que negras e negros fizeram por Porto Alegre e o que Sônia Rosa escreve de bonito e importante para as crianças, em especial, negras. Sem falar de como nossa situação atual da pandemia de Covid afeta mais as negras e os negros dos bairros mais distantes do centro da nossa cidade, bairros esses formados pela “gentrificação” como, por exemplo, no final dos anos 60, do Areal, a área ao longo da atual avenida Ipiranga quando da canalização do arroio Dilúvio. Milhares de descendentes de escravizados(as) que ali viviam foram transferidos(as) para o que hoje é a Restinga, postos desde então a quilômetros e vários ônibus distantes de seus locais de trabalho. Ou seja, olhar para a realidade de todos os seres humanos à nossa volta.
P.S.: Em 20 de abril último, o policial branco Derek Chauvin foi condenado em Minneapolis, EUA, pelo homicídio de George Floyd, negro que estava em sua custódia. Chauvin foi o primeiro policial branco na história daquele estado a ser condenado pela morte de um homem negro. O Promotor Geral do Estado, Keith Ellison, disse que um ato de responsabilização criminal foi realizado, não a justiça que um estado deve garantir sempre aos seus cidadãos, pois essa requer lá reformas no sistema judiciário, nas corporações policiais, nas leis, nos comportamentos enfim, e disse também que só haverá justiça de fato quando certas pessoas não estiverem somente abaixo da lei e certas outras somente acima da lei. O que dizer sobre o que acontece por aqui? O que dizer do que aconteceu e de como foi tratada a morte de João Alberto Silveira Freitas, negro, no Carrefour do Passo d’Areia em 19 de novembro de 2020?
(*) Pai da Beatriz, do 3º ano da escola, Prof. da Filosofia da UFRGS e Doutor em Filosofia pelo University College London (Inglaterra).