Gerson Smiech Pinho (*)
Ingressei na escola ao completar seis anos, o que pode parecer muita idade para os parâmetros de hoje. Naquele tempo, porém, era comum que as crianças atravessassem o período dos primeiros anos convivendo somente com a família e seu entorno, iniciando a vida escolar no final da educação infantil, já às portas da primeira série.
Ainda que as memórias dos tempos iniciais de escola sejam escassas e pouco definidas, a lembrança de certos rostos e nomes persiste com bastante nitidez até hoje. Entre eles, sem necessitar fazer muito esforço, a imagem das minhas primeiras professoras emerge com relevo em meio às lembranças dos corredores de madeira azul do grupo escolar que frequentei. Frente ao olhar infantil daquele período, pareciam figuras imponentes, que se sucediam ano após ano, do Jardim de Infância até a quarta série, último momento em que se tinha a regalia de ter uma única mestra encarregada para cada turma.
As recordações, que se associam a essas presenças, sobrevém recheadas de afeto e não por acaso perduram vividamente até o momento atual. Ainda que seja impossível ter plena consciência da totalidade de sua influência que tiveram sobre mim, cada uma delas marcou decisivamente este que se tornou capaz de escrever estas linhas.
A infância circunscreve um tempo no qual a presença dos adultos faz-se tão necessária quanto vital para quem dá seus primeiros passos por este mundo. Carente de condições para sustentar-se de forma autônoma, a criança necessita do outro, tanto na acolhida frente ao desamparo com que inicialmente se chega à existência, quanto para gradualmente se apropriar dos instrumentos necessários para enfrentar a vida. Se mães e pais costumam ser os encarregados desse lugar primordial de abrigo e proteção, professoras e professores vêm na sequência para encarnar tais funções, muitas vezes junto àqueles que transitam ainda pelo tempo de ser bebê.
Sigmund Freud, em um breve artigo escrito em 1914, intitulado “Algumas reflexões sobre a psicologia escolar”, afirma que a conduta de um aluno frente a seus professores só se torna compreensível quando se leva em conta as vivências anteriores, junto à família. Isso porque há uma linha de continuidade entre o primeiro espaço de convívio familiar e a escola, âmbito inaugural da vida extrafamiliar. Se o termo “educação” for tomado em toda sua complexidade e amplitude, ultrapassando o mero desempenho acadêmico ou aquisição de competências, é fundamental considerar que, no ato educativo, também está em jogo um sujeito que se constitui, o que implica não só a formação pessoal da criança, mas também sua inscrição no laço social.
Incumbidos de tais funções, mais do que giz, lousa e apagador, educadoras e educadores empunham uma caixa de ferramentas composta primordialmente por palavras, olhares e afetos. Com estes instrumentos em mãos, costumam ser hábeis na sustentação psíquica dos pequenos, bem como exímios na transmissão do patrimônio que constitui nossa herança simbólica e cultural. Em seu delicado trabalho, professoras e professores não se limitam tão somente a ensinar ou passar adiante conteúdos. Independentemente do
currículo, boa parte daquilo que é transmitido não se passa através do conhecimento formalizado, mas por meio das relações tecidas em sala de aula. Todas as experiências que tramitam neste âmbito compõem um saber que vai mais além do conhecimento. Saber inconsciente, que tece a posição que cada um de nós habita no convívio com o outro, nisso que constitui o laço civilizatório. Assim, as letras que se transmite não são somente aquelas que ficam registradas na superfície dos cadernos ou livros, mas fundamentalmente as que ficam impressas no corpo, ao modo de uma tatuagem.
Esta semana vem marcada por duas datas bastante especiais – inicia com o dia da criança seguido pelo dia do professor. Coincidência ou não, a proximidade das datas permite festejar e prestar homenagem simultaneamente aos pequenos e seus mestres, criadores e recriadores do laço social.
(*) Psicanalista e psicólogo, membro da APPOA, do Centro Lydia Coriat e pai de ex-alunas da Projeto.