Cauan Rolim Ferreira/K.one (1)
A necessidade de se expressar é registrada de forma pictográfica nas paredes do mundo, desde que os humanos se entendem como seres sobreviventes do seu meio. De pelo menos 20 mil anos pra cá, das cavernas de Lascaux aos subúrbios de NY, o legado que perdurou às civilizações mais imponentes e devastadoras, eternizou gerações ancestrais de um passado longínquo, que transcende até mesmo a evolução da sua própria intenção, fortalecendo a certeza de que todos viemos de uma mesma origem. A capacidade de desenvolver uma forma para expor visualmente os sentimentos, intervindo naturalmente no ambiente, se tornaram um fato artístico atemporal histórico em todas as suas fases de manifestação.
Das necessidades possivelmente pragmáticas da pré-história às complexas expressões sociais das emoções humanas da atualidade, pouca coisa mudou no que diz respeito ao ato de levar pigmento à um sólido suporte vertical, criando um espectro visual para o inconsciente coletivo nas gerações de transeuntes observadores. Pigmento esse capaz de permear os milênios, como se ainda fossem pragmaticamente necessários, e se lá permanecem, conceitualmente ainda podem ser considerados assim, para então se tornarem efêmeros, em constante mudança, como hoje se configuram.
É com essa intenção de perspectiva histórica que pretendi apresentar as possibilidades de criação e ação para os alunos do 5º ano da Escola Projeto, em 2021, um ano pós pandêmico. Nos encontros marcados com as duas turmas, inicialmente apresento um pouco do meu trabalho, do processo criativo, e da história do graffiti e do hip-hop, trazendo referências e experiências próprias, com a intenção de expandir as possibilidades de atuação dos alunos, preparando o terreno mental para plantar as sementes artísticas, antes de pensarmos no projeto.
A partir de um esboço feito por eles, apresento as técnicas e como poderíamos executá-las no suporte combinado com a coordenação. Nunca deixo de me impressionar com o conhecimento prévio que eles têm sobre o assunto e com suas pertinentes e maduras perguntas. A empolgação, curiosidade e chuva de ideias é sempre abundante nesse momento. Com o projeto alinhado e a técnica definida, partimos para a ação prática dos processos preparatórios, antes de aplicar de fato a tinta na parede. É aí que começa o descontrole, os desafios, as angústias, as dificuldades e as realizações, incentivando os talentos e habilidades de alguns e orientando as conquistas em grupo, para que todos possam participar, contribuir e se sentir parte integrante do processo.
Para o trabalho deste ano trabalhamos a representação das etnias que formaram o RS com a imagem de três personagens, o indígena e seu cocar, uma mulher negra de cabelo “black power” e o homem branco/europeu com a bandeira da paz. Durante o processo de execução, novas ideias foram surgindo, como a interação entre as culturas, a composição dos elementos no preenchimento do espaço e a ideia de compor a natureza como um fator integrador que une todas as culturas. Para a pintura utilizamos “stencil”, rolinho, pincel, tinta acrílica e o aerosol, mais conhecido como spray… ah o spray.
Sucesso inquestionável em todas as oficinas, essa ferramenta de trabalho mais parece uma varinha mágica que desperta crianças dos 4 aos 60 anos de idade. Mais difícil do que adquirir as habilidades necessárias para manusear a lata e suas peculiaridades, é conseguir conter a ansiedade dos pequenos que se atraem pelo material como magnetismo. Aos poucos eles vão realizando seus desejos de borrifar tinta por toda parede, deixando escorrer o medo de errar e adquirindo experiência com a prática, pra que depois eu possa criar as minhas intervenções, para ajudar a enriquecer o trabalho.
Como sempre, o resultado final é recompensador, mas o mural deste ano foi emblemático e um dos mais representativos feitos pelas turmas de 5º ano. Desta vez a ação foi dividida entre as turmas da manhã e da tarde, que, por motivos ainda de restrições de aproximação, não puderam se encontrar pessoalmente para realizar o trabalho em conjunto. Porém executaram, com um trabalho em equipe de extrema maestria, um mural lindamente colorido e conceitual, que ficará energizando o ambiente, promovendo a reflexão sobre a nossa cultura e a vida escolar e enchendo os olhos dos profissionais, visitantes e das novas gerações de alunos. Só não contem pra Neca, mas minha ideia é criar um “Beco do Batman” nas “ruas” da Escola Projeto.
A única dificuldade vai ser das professoras, em resistir aos pedidos de pátio extra, e dos pais, em ter que tirar as manchas de tinta do uniforme dos filhos.
Além da diversão, é importante destacar também a agilidade, comprometimento e organização das professoras para realizar esse projeto, e fazer com que as etapas do processo criativo e de execução fossem muito agradáveis e eficientes.
Nesses 6 anos como artista colaborador da escola, participei das mais diversas atividades, além de ministrar as oficinas anuais com o 5º ano. Fiz oficinas também na educação infantil, pinturas em materiais e objetos variados de tudo que é coisa, dei entrevistas, fiz “bottons”, camisetas, cartazes, adesivos, “toy arts”. Também fui responsável pelo design gráfico, tendo a honra de criar o logo de 30 anos da escola, além de customizações, “body arts”, e pelos desafios virtuais, feiras e etc. Durante essa vivência toda, tenho percebido uma crescente evolução na qualidade dos trabalhos, como se estivessem passando por um processo de amadurecimento, gradativamente em ciclos anuais, tanto conceitualmente, quanto técnica e artisticamente, numa sinergia crescente entre coordenação, professores, monitores, funcionários, pais e alunos, que interagem e deixam um pouco de si no espaço físico da escola.
A pandemia foi um desafio à parte, em que fomos obrigados a nos afastar e criar novos métodos para desenvolver um trabalho que é puramente físico. Não temos como pintar uma parede à distância, por EAD ou em chamadas de vídeo. Minha desatenção com a interação nas redes sociais não foi motivo para deixar de cumprir o trabalho de forma digital, realizado nesse “não meio”, intangível, asséptico, sem corpo, sem lugar, mas existente, em luz, pixels, informação, aparência e virtualidade. Assim, desenvolvemos aulas e projetos que demandaram conhecimento digital de todos os envolvidos para conseguirmos realizar o registro de um mural das turmas em 2020. Foi produzido, então, um painel de 3,5m de altura, em lona impressa, que está exposto nas duas unidades da escola, com a composição e tratamento digital que fiz dos trabalhos dos alunos, utilizando como tema, a técnica de criação de “lettering”.
Vejo, com essa explosão digital, a criação de um metaverso e tudo que comporta esse tipo de exploração virtual, uma necessidade ainda maior de expor as crianças a um convívio presencial, sujando as mãos, tocando nas pessoas, criando trabalhos coletivos, que é onde se cria de fato uma rede social real, claro dentro das possibilidades atuais e respeitando as orientações sanitárias. Uma curiosidade em relação ao uso de máscaras, é que nos primeiros trabalhos com as crianças há 6 anos atrás, uma das questões era sobre a inexistência de materiais não tóxicos para proteger as crianças do uso do spray, que posteriormente se tornaram mais acessíveis. Uma alternativa era proporcionar o uso de máscaras para todas as crianças, o que na época era algo muito inusitado, que seria difícil de aplicar. Mas nunca imaginaríamos que hoje teríamos essa prática como uma realidade diária no cotidiano da escola e da vida dos alunos.
Talvez passar o conhecimento adquirido adiante tenha sido uma das intenções desse homem do paleolítico, sobrevivente, em desenvolvimento artístico involuntário. Atitude esta que representa a forma de ensino oral, visual, associativa, imaginativa, como resistiu o legado cultural dos povos originários ameríndios, nesses milhares de anos, a história desses professores da humanidade, tarefa natural de um ser que vive, ensina e aprende, exatamente nessa ordem espiral, em sua passagem neste espaço/tempo.
Me deparei, então, neste momento com a possibilidade de retribuir toda a oportunidade que tive em vivenciar a arte desde criança, através das minhas percepções do universo em que vivia, dos sonhos que materializava com o lápis no papel e das valiosas referências que recebia de minha mãe Marion Velasco, sempre atenta aos meus avanços artísticos, sobre o Egito antigo, os gregos, os orientais, os contemporâneos e toda a história da arte, que eu absorvia no modo esponja e depois aprofundava em buscas pessoais. Também através das habilidades adquiridas a cada novo desenho, ditas inatas por quem as admirava de fora, ou dom de Deus como meu avô gostava de lembrar, ao mesmo tempo que me incentivava a nunca parar de desenhar, voluntariamente ou não relacionando a aptidão com a dedicação, com o estudo e o desenvolvimento prático com repetição, pedindo sempre um novo desenho de cavalo ou passarinho, que eu pesquisava observando as paisagens litorâneas, ou nas fotos e ilustrações das enciclopédias da época, tendo encontros com o realismo. Essas ricas memórias de infância, entre tantas outras que eu poderia dissertar com extrema exatidão, estão vivas em mim até hoje e nítidas como os precisos traços em nanquim de Hokusai.
São momentos como esses, que procuro marcar nos alunos que deixam sua expressão visual para a escola e para os próximos alunos, irmãos de ex-alunos, colegas do meu filho e agregados, que me veem no pátio, nos corredores, na rua, e me cumprimentam segurando a ansiedade para chegar no 5º ano e deixar seu trabalho também nas paredes da escola. Minha vontade é que esses momentos produzam memórias das experiências de um período das suas infâncias, incentivando o surgimento de novos artistas na área. Atuar na Escola Projeto é como inserir uma injeção recíproca de entusiasmo.
Por falar em filho, tive o privilégio também de conviver nesses momentos com o Theo, que completa um ciclo de 4 anos na Projeto. Onde pôde vivenciar múltiplas experiências artísticas no cotidiano escolar e presenciar o espaço comigo durante as atividades com as turmas, desde o G4. Durante esse tempo, pude oferecer oportunidades para que ele se desenvolvesse, e acompanhar de perto seu crescimento em todos os âmbitos, físicos, intelectuais, culturais e sociais, com um excelente apoio e comprometimento da escola.
Lembro que fui justamente reprimido por pichar as classes e corredores da minha escola na infância, com o argumento de que estaríamos depredando o espaço que era público e tínhamos o dever de cuidar como se fosse nossa casa, e era de fato nossa segunda casa. Filho do I.E., e do anexo Dinah Nery (vizinho de rua da Projeto), nessa época já fazia desenhos em adesivos, “stickers” para dar e vender pela escola. Tive um ensino de alto padrão numa escola pública, o que hoje me faz tristemente pensar no quão mais degradado podem deixar essa casa esses governos marginalizados, displicentes na questão mais importante para a formação de um indivíduo na sociedade: a educação pública de qualidade. Neste momento podemos voltar a indagar o sentido da palavra intenção, mas isso seria tema para um outro texto.
Falando em ensino público, não posso deixar de falar sobre a contribuição social que o movimento hip-hop me oportunizou a fazer parte. Procuro sempre trazer essas experiências da periferia, como exemplo de transformação social que o graffiti pode proporcionar, gerando valor para a comunidade, como forma de agradecimento e retribuição a tudo que a vida me deu, e isso é gratificante. A força dessa forma de arte não está somente nas imagens e mensagens que tatuam os muros, está também na sua capacidade de ser livre, abrangente, reflexiva e democrática, possibilitando acesso à cultura para todos ao mesmo tempo, dos mais aos menos favorecidos.
Essa parceria com a Escola Projeto começou em 2015, quando um cliente amigo, pai da escola, Otávio Dutra, me indicou para uma oficina de graffiti que a escola solicitava, no mesmo momento que eu estava sendo indicado também por outra pessoa, culminando assim, meu primeiro contato com a sensibilidade e simpatia da coordenadora Deborah Fisher. E aos poucos fui descobrindo coincidências nas histórias da escola, de minha avó que trabalhou com a Beth Baldi, de amigos que estudaram na escola, entre outras particularidades, que me fizeram ter cada vez mais intimidade e liberdade para agir, interagir, atender demandas e propor ideias, me fazendo sentir em casa, novamente em um ambiente escolar e também familiar, porém agora de outra perspectiva, fazendo parte do conteúdo pedagógico.
Como o “Flower Thrower” de Banksy, vejo na Projeto, uma escola que não apenas permite ordenadamente as intervenções artísticas em suas paredes, como incentiva os alunos a explorarem suas habilidades expressivas, acolhendo com carinho as mais ousadas ideias. Graffiti é ação, é correr riscos, tanto no riscar, como no correr, e disso as crianças entendem bem.
Assim como numa interpretação pessoal da matriz B do processo criativo de Charles Whatson, a cidade muda quando aprendemos a andar de skate: as escadarias não servem só pra dar passos, os corrimões não servem só para se apoiar, o meio fio não serve só para dividir a rua da calçada, os bancos não servem só para sentar. Esse mesmo olhar também serve para observar os muros da cidade, que ganham outros sentidos quando pintamos na rua, transformando a cidade em uma gigante tela de 3 dimensões a céu aberto.
Com a minha atração precoce pela contracultura do skate e do surf, e a habilidade desenvolvida para o desenho, o graffiti caiu pra mim como uma luva, apesar de me orgulhar das mãos manchadas de tinta. Em meados dos anos 2000, quando ainda estava começando minha carreira artística, ouvia-se que o graffiti, apesar de notável ainda era considerado subversivo, seria moda passageira e não se sustentaria por muito tempo no campo das artes. Nesse período alguns amigos já se aventuravam a expandir suas expressões graficamente nas ruas, como Mateus Grimm, Felipe Pedra, Felipe Reis e Rodrigo Careca. Foi então que conheci, através de minha mãe, o querido amigo arteiro Luiz Flávio Trampo, pioneiro do graffiti em POA, que
me ensinou muito sobre as técnicas, as leis da rua e do movimento hip-hop. Em 2009 escrevi sobre a influência da “stencil art” na comunicação publicitária, na dissertação de graduação, estudando Banksy e Alexandre Orion, quando o graffiti já se distanciava da pichação no imaginário coletivo.
Mais de uma década depois, o graffiti – ou “street art”, muralismo, arte urbana, arte de rua ou ainda chamado hoje de pós graffiti, devido às diferentes nomenclaturas e conceitos que não cabe aqui aprofundar – é considerado o fenômeno de manifestação cultural mais crescente da atualidade, atingindo proporções descomunais em empenas de prédios ao redor do globo terrestre. Conquistando também cada vez mais espaços em galerias, com a notoriedade vanguardista brasileira, como Os Gêmeos, Binho, Tinho, Zezão, Kobra, Titi Freak, Flip, Speto, Hight Graff, Onesto e Nunca, entre tantos outros que fizeram parte do pioneirismo dessa arte. Ou ainda seus antecessores na intervenção urbana, como Alex Vallauri, Cildo Meirelles e Dante Velloni, que bebiam dos movimentos internacionais de NY, França e Inglaterra. Arte essa supervalorizada hoje no mercado artístico e nos locais onde está inserida.
Nesses mais de 20 anos de atuação como artista urbano, realizando trabalhos sociais e comerciais, desenvolvi uma identidade visual, caracterizando signos que remetem às minhas vivências pessoais, contemplando virtudes, conexões com a natureza e as mais intrínsecas sensações internas e sonhos, buscando referências nas culturas ancestrais, ameríndias, pré-colombianas e polinésias, querendo traduzir tudo isso em imagens, durante as tantas fases dessa passagem pela vida.
Talvez não seja possível criar atualmente uma arte de rua tão duradoura quanto às tecnologias ancestrais das cavernas, que misturavam pigmentos naturais com gordura animal, aplicados em um suporte argiloso protegido das intempéries. Mas o que importa hoje é que essa arte vai continuar se modificando, se renovando em gerações, transformando os ambientes, encantando e clareando as mentes que por ela passarem.
Não importa o quanto queiram menosprezar ou impedir essa forma de manifestação artística: enquanto houver paredes, estaremos lá para pigmentá-las com impacto.
(1) Cauan, além de pai do Theo, é artista visual, ilustrador, publicitário, designer gráfico e pós-graduando em história da arte. Instagram: @cauan_rolim / Site: www.cargocollective.com/kone