Celso Gutfreind (*)
Aprendi a ler. Ensinaram-me, quando era pequeno. Li o que pude e, como lia, eu li até o que não pude. Ler fazia poder, pensando, sentindo, sem abusar. Ler continha a violência e preparava a inconformidade diante dela. Daí a escrever foi um ato de bravura sem violência. Aprendi a escrever. Ensinaram-me, quando era maior. Escrevi o que pude e, como escrevia, eu escrevi até o que não pude. Escrever fazia poder, pensando, sentindo, sem abusar. Escrever continha a violência e preparava a inconformidade diante dela.
Tive glórias, edições, prêmios e, principalmente, alguns leitores. E, sobretudo, um pequeno leitor do Nordeste, que me mandou um áudio, dia desses. Leram para ele a história do Freudinho (Tomo Editorial, coleção filosofinhos), onde conto as peripécias de um menino às voltas com a separação do seu cachorrinho, o Ego.
Leram para ele, enquanto estava doente. Uma tosse molhada, segundo me contou. Aguardava uma consulta e já estava melhor da tosse molhada, porque lia. Achou o livro louco e estranho, com as “frases bem diferentes” (sic). O menino do livro, quando olhava para longe, via perto e, quando olhava perto, via dentro. Estranho e louco a ponto de fazer se interessar pela linguagem. E – sic, novamente –, “perceber as coisas da vida”.
Bingo. Bingo. Ler e escrever também me acolheram quando me sentia mal de minhas tosses molhadas. Escrever e ler secaram-nas para eu poder, depois e durante, me molhar melhor. E precisei também de frases diferentes para perceber a estranheza e a loucura do que elas tentavam representar, justo o que eu vivia. E, agora, dentro dos livros, já podia perceber as coisas da vida, fora dele.
Sem os livros, eu me afogaria nas tosses, infensas a xaropes sem palavras ou metáforas ou encantamento. Sem os livros, eu não representaria a loucura vivida fora deles. Eu não perceberia a vida.
Edições, prêmios, degraus estranhos e menores. A glória chegou agora e foi mesmo esta, a de alcançar algumas palavras para um menino atravessar a tosse e perceber as coisas da vida.
(*) Pai de ex-aluna da escola, psicanalista e escritor, Celso é um colaborador muito especial deste blog, nos permitindo divulgar textos seus, inéditos ou selecionados de diferentes obras já publicadas.