Gerson Smiech Pinho (2)
Produzido em 1997, o filme “A ostra e o vento” conta a história de uma adolescente criada e educada solitariamente pelo pai que trabalhava cuidando de um farol, no isolamento de uma ilha, sem conexão com o continente. A jovem, cujo universo restringia-se aos limites da ilha, sonhava com o mundo que se encontrava além das fronteiras do confinamento em que vivia. Na medida em que a história transcorre, observa-se como a personagem gradualmente se perturba, se desorienta e passa a delirar, submetida à exclusividade do laço que mantinha com o pai.
Ainda que tenham transcorrido mais de duas décadas desde sua realização, esta narrativa cinematográfica evoca, com grande força e delicadeza, um tema crucial no contexto atual de nossas vidas. Os efeitos do isolamento social em função da pandemia deram relevo a algo que, de alguma forma, sempre soubemos ser fundamental. Os meses que passamos confinados na “ilha doméstica” de nossos lares colocaram ainda mais em evidência a importância vital dos laços com as pessoas e com o mundo fora dos limites da família, em especial para as crianças e para os adolescentes.
No período em que o isolamento social precisou ser mais intenso, passou-se a experimentar um convívio entre os integrantes do território familiar quase desprovido de intervalos e de diferenciações, o que levou a um incremento do sofrimento e do mal-estar, principalmente entre os pequenos e os jovens. A limitação da circulação e a restrição exclusiva ao espaço doméstico desencadearam diversas modalidades de expressão sintomática, as quais surgiam como formas de colocar uma borda ou estabelecer um limite ali onde as fronteiras pareciam ter se perdido.
Se, no tempo inicial da existência, as experiências de diferenciação e separação são vividas, em sua grande maioria, no interior do próprio universo familiar, elas se ampliam na medida em que criam-se novos laços e modificam-se os já existentes. Nessa direção, o ingresso na escola tem um lugar bastante especial. O convívio com os pares e o gradual incremento do trânsito extrafamiliar que são ali experimentados tornam-se fundamentais no longo processo de constituição de nossa vida psíquica e de inserção no campo social e cultural.
Por esta razão, não foi sem surpresa que chegou a notícia da aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei que institui o Homeschooling no Brasil. Após toda a experiência que tivemos com o afastamento das crianças das escolas no contexto da pandemia, como pensar ser interessante uma educação que fique restrita ao âmbito familiar? Ao longo do tempo de confinamento, muito foi falado sobre as perdas, não somente em termos de aprendizagens, mas principalmente em relação ao convívio e à socialização das crianças e adolescentes. Retirar o espaço escolar implica o apagamento do sentido amplo do termo “educação”, o qual ultrapassa em muito o ganho de conhecimentos ou de habilidades e implica a inclusão de um sujeito na vida cultural e no laço social.
A escola configura, para uma criança, uma vivência inaugural de alteridade e de distanciamento do ambiente familiar, pois permite sair da pequena “ilha” em que se nasce para atravessar oceanos e se aventurar na exploração de continentes desconhecidos, com a gradual conquista de autonomia, fora do controle e do domínio parental. Nessa direção, o papel da escola constitui um território para construção de laços com outras pessoas, a partir dos quais pode se ter experiências de convívio com uma diversidade de estilos, com a alteridade e com a diferença. Nessa direção, encontrar-se com pontos de vista e modos de ser divergentes daqueles presentes no núcleo familiar tem um papel fundamental. Trata-se de experimentar a riqueza e a complexidade das formas possíveis de estar no mundo social, sem ficar isolado na própria ilha.
(1) Texto publicado originalmente como coluna da APPOA e tb no Sul21, em 24 de maio/2022.
(2) Pai de ex-alunas da Projeto, psicanalista, membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre) e do Centro Lydia Coriat.