Julio Cesar Walz (2 )
Há emoções escondidas
que nos fazem muita falta
lá dentro, na nossa alma;
estão longe, não nos vêm,
nos fazem perder a calma,
aguardam ser ouvidas.
(Paulo S. R. Guedes)
O medo é uma emoção muito primitiva e faz parte da condição da vida biológica, tanto nos animais como nos seres humanos. Ele organiza direta ou indiretamente grande parte de nossas ações. E, dentre as emoções, o medo é aquela que consegue produzir ações físicas imediatas como resposta de proteção de ataque ou fuga: aumento da pressão arterial, aumento dos batimentos cardíacos etc. Por isso, é inevitável que qualquer ser humano sinta medo. Ele é fator de proteção.
Mas como o ser humano também é um ser da cultura ou da linguagem, o medo acaba tendo um desenvolvimento que, muitas vezes, não condiz com a sua origem ou objetivo. Ou seja, o medo, que tem um caráter protetor, de avisar do perigo, de nos colocar em posição de alerta, acaba tendo manifestações desproporcionais, que não condizem com a realidade. Ou seja, o medo virou em experiência de fantasmas. Um medo sem nome.
Começo destacando, então, o papel das pontes mentais e insistindo muito para que os pais e demais cuidadores exerçam e até mesmo redescubram o ofício diário de favorecer a mediação entre a criança e a realidade – favorecer para que o espaço da comunicação não seja infinito. Ou seja, marcar presença. A criança precisa da palavra mediadora que a proteja dos excessos e permita que ela siga adiante para que a dinâmica das perdas e ganhos não sobrecarregue seu psiquismo e que ela não viva nas perdas apenas desprazer e restrição, mas que paralelamente vibre com o ganho, com o novo e com a conquista do arriscar a esperança. Além disso, a palavra mediadora sempre cumpre a função de impedir que se viva em fantasmas, em suposições, no vazio do sentido. A pior ameaça para a construção das pontes sempre será o vazio interminável, a ausência, o sem nome. Nessa ausência os fantasmas proliferam ao natural.
As pontes servem de caminho na passagem de uma margem à outra do rio. Elas permitem que alguém transite de um lado a outro. Se houver pontes, mais tranquila será a passagem. A esse papel de auxílio na construção das pontes eu denomino de cuidado. O cuidado protege-nos um pouco mais do sentimento de desamparo e sustenta a esperança de investir na vida.
Em segundo lugar, destaco que a construção de pontes ou a tarefa do cuidado significa estabelecer um convívio humano. Todo convívio gera turbulência, seja ela amorosa, agressiva ou ambas simultaneamente. Nenhum convívio é tranquilo. A dinâmica do crescimento envolve perdas e ganhos, separações e aproximações. Por isso, cabe ao adulto a iniciativa do cuidado. Seu aparelho mental é mais desenvolvido e, com isso, tem mais condições de lidar com a alternativa e a busca de soluções em momentos de impasse.
Muitos adultos sentem-se sobrecarregados com a tarefa do cuidar. Uma das razões para esse sentimento de sobrecarga advém da vivência fantasmática do adulto em relação ao ato de cuidar e em relação à própria criança. Vivência fantasmática envolve a todas as suposições que o adulto tem em relação ao seu papel. O adulto é imprescindível para a criança. Agora sentir-se imprescindível é diferente. O cuidado passa a ser uma exigência poderosa e limitante. Não se pode errar, a pessoa (o adulto) não pode afastar-se, tudo gira em torno do adulto. Quando for assim, sugiro que essas pessoas busquem alguma alternativa, porque para
uma criança é extremamente prejudicial tanto ficar perdida no espaço infinito ou na ausência da palavra mediadora e verdadeira, como sobrecarregada com os fantasmas dos adultos. Caso isso aconteça em demasia, a construção das pontes pode ficar fragilizada.
Em terceiro lugar, procuro mostrar os medos mais comuns na vida das crianças e dos adultos. Dentre as dinâmicas psíquicas do medo, digamos assim, destaco duas que me parecem decisivas e presentes em toda a vida, as quais compõem grande parte de todos os medos que sentimos: a ansiedade de separação ou medo da solidão e a ansiedade de castração ou medo do limite. Até poderíamos dizer: aprendendo a lidar com a solidão é possível aprender a desenvolver a criatividade. A criatividade surge como capacidade quando pode surgir um vazio não fantasmático. Aprender a lidar minimamente com o limite nos permite agir com os pés mais no chão e com um sentimento de responsabilidade pessoal mais constituído.
Em quarto lugar, trago alguns indicativos de quando você deve ficar mais atento em relação ao que está acontecendo:
- Quanto à intensidade: se o medo aparecer de forma desproporcional em relação à realidade psíquica ou à vida e estiver restringindo a sua liberdade de viver e crescer;
- Quanto à duração: se o medo tiver uma duração que também seja desproporcional, ou seja, ao cessar a fonte do medo, você ainda sente o mesmo medo apesar de a fonte haver desaparecido;
- Quanto aos efeitos orgânicos: são aqueles sintomas que afetam o seu humor, o corpo, a cognição ou a atividade motora.
Em quinto lugar, diferencio didaticamente os medos em: visíveis e invisíveis. O objetivo é chamar a atenção não apenas para as situações evidentes de quem sente medo. Apoiado em minha atividade profissional, a de psicólogo clínico, decidi ajudar um pouco na percepção dos medos invisíveis, aqueles que estão no dia a dia. Muitas pessoas não percebem como eles agem, limitando em muito a vida, a criatividade e o crescimento. Os medos invisíveis são baseados em fantasmas.
Ninguém nasce e vive para sofrer. Todos sabemos que o sofrimento existe e faz parte de nossa condição humana. Mas não é necessário que uma pessoa busque ou mantenha a dor que sente. Muitas pessoas sofrem e mantêm seu sofrimento pela construção de uma vida mental aprisionada ou sem saída. A maior parte desses sofrimentos está baseada em fantasmas de separação (solidão) e de castração (limite), fantasmas sempre inescrupulosos. Esses medos gerados por fantasmas podem ser resolvidos, caso a pessoa decida a seu próprio favor.
Portanto, insisto que você não se acomode em sua angústia. Não existe preço para a qualidade de vida mental, poder amar e trabalhar com mais tranquilidade. A isso chamo de humanizar. Ou para usar outra expressão: cuidar do viver.
Uma paciente em atendimento há dois anos, que chegara com diagnóstico de doença do pânico, relatou certa vez:
“Eu sempre afirmei aqui que não era criativa (esta frase é uma vivência fantasmática: paralisante da experiência). Veja, eu andava incomodada com a disposição e os móveis da minha cozinha. Já te disse muitas vezes que não tinha ideia de como fazê-la diferente. Sendo que eu tinha dinheiro guardado para isso. Anteontem fiz algo que nunca havia feito e que há um ano venho pensando fazer. Sentei no banquinho, aquele da cozinha, e olhei para a mesa das refeições. Parecia que eu estava conversando com ela, como uma louca. Entrei na conversa. A mesa me disse: “Quem sabe tu me empurras até aquele canto ali e me vira neste sentido paralelo à parede”. Escutei a sugestão e fiz. (isto é, começou a matar o fantasma). Só o fazer já foi a glória. E quando vi o resultado e o espaço que ganhei, nossa…, descobri o quanto eu minto para mim mesma, o quanto eu tinha medo. Nem sei do quê. Eu tenho criatividade. É só conversar sem nenhuma pretensão com o que agente quer mudar.”
Veja que essa pessoa nos mostra toda a dinâmica fantasmática das perdas e ganhos, separações e aproximações em um pequeno fragmento da sua vida. E, mais, mostra-nos como funciona aquilo que falei acerca do fantasma. Ao aceitar cuidar da sua vida, e não existe outro caminho, percebe seus fantasmas e vê que eles não são tão fortes e perigosos. Nesse sentido, pôde avançar na construção de uma liberdade de pensamento cada vez maior, surpreendendo-se consigo mesma. O medo pôde diminuir e gradualmente dar lugar ao crescimento. Cuidar do viver é a capacidade e o esforço de não fugir psiquicamente da experiência emocional do ato psíquico ou físico desejado. É não se assustar fantasmaticamente da aproximação e do distanciamento. É recuperar os olhos da paixão. A paixão nos coloca diante de um processo inerente da vida: a de que não temos controle sobre o que pensamos ou queremos. Ela nos surpreende e consegue que alteremos os móveis da cozinha e ganhemos espaço. A paixão nos coloca diante do interesse e da inevitável ação resolutiva.
Cuidar do viver é descobrir que os fantasmas não são necessários, aliás, eles que nem existem. Sem o fantasma que a acompanhava há anos, a paciente imaginava que estaria na solidão, pois não sabia que, ao largá-lo, inevitavelmente começaria a se encontrar com pessoas, ideias, paixão, mobilidade. Para ela, a solidão era vista sob os olhos do sentimento provocado pela possível perda do fantasma. Tinha medo de perder o fantasma. Afinal, o que viria no lugar?
O que vem no lugar do fantasma é a criatividade. Hoje, a solidão pode ser preenchida através da criatividade e com a vida como ela é.
Cuidar do viver é conversar, mesmo que inicialmente como um louco, com a mesa da cozinha, que está pedindo para ser tocada, mexida, e receber novos olhares e dar novas dimensões a ela. Ou seja, cair na vida. Daqui em diante passaríamos a falar de outras formas de solidão, não mais em relação aos fantasmas, mas em relação à vida. E os medos são bem menores, menos apavorantes e não inibirão um viver mais alegre.
(1) Trecho do livro Aprendendo a lidar com os medos – A arte de cuidar das crianças (páginas 164 a 170), o qual se encontra esgotado, na quarta edição. Com autorização do autor, publicamos neste blog mais um trecho selecionado/adaptado do livro. Outros trechos, focados nos temas dos medos infantis e da tarefa dos cuidadores de “construir pontes”, já foram publicados neste blog ao longo do ano de 2020 e neste ano tb.
(2) Pai de ex-alunos da Projeto, Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Ciências Médicas/UFRGS – HCPA e autor do livro citado.