Virgínia Veríssimo (*)
Diz lá pra Dina que eu volto
Que seu guri não fugiu
Só quis saber como é
Qual é
Perna no mundo, sumiu…
(“Com a perna no mundo”, Gonzaguinha)
No ano de 2008, na Escola Projeto, tive uma colega de trabalho com quem pude atuar como professora alfabetizadora e também exercer as minhas primeiras aprendizagens como coordenadora pedagógica. Ela foi minha “paralela”, como costumamos dizer na escola, mas eu gostava de chamá-la de companheira de série. Foi com ela que pude realizar uma das propostas mais “loucas” e, ao mesmo tempo, mais significativas, dentre as que já experimentei como professora: propor para as nossas duas turmas juntas, em torno de quarenta crianças, uma oficina de cerâmica. Eu havia participado de uma oficina pela manhã com o professor Carlos Carusto Camargo e colocaria em prática os aprendizados com nossas turmas, à tarde. O resultado dessa aventura foi uma sala de artes bem suja, após cada criança ter criado uma cabeça de argila, uma diferente da outra, em trabalhos produzidos totalmente por elas e com a “cara” delas.
Foi nessa parceria também que propusemos para as nossas turmas a criação de orixás de sucata, a partir do estudo da obra de Marilda Castanha, escritora e ilustradora mineira estudada naquele ano. Os orixás encantaram e emocionaram tanto o saudoso Giba Giba, nosso músico convidado de 2008, que ele quis levá-los para protegê-lo no palco, ele e seu sopapo, no dia do grande show de encerramento do estudo.
Também foi com ela que pude viver algumas situações delicadas do dia a dia escolar. Ela tinha um aluno que a mobilizava, sempre que ficava aborrecido com algo. Às vezes, ele nem conseguia expressar o que era, escondia-se. Não havia jeito de sair de onde estava e em casa isso também acontecia. Um dia consegui intervir e resolvi o desafio de tirá-lo do lugar onde estava. A partir dali, sempre que isso acontecia, ela me olhava de um jeito que eu já sabia que estava precisando do meu auxílio como coordenadora, então, quando ele entrava em um cantinho ou embaixo de alguma mesa e não havia como voltar às atividades com a turma, eu já sabia o que devia fazer. Numa tarde, ele resolveu se enfiar no vão entre uma prateleira e a janela da biblioteca! Como conseguir que saísse dali? Que argumentos usar? Não lembro detalhes dessa conversa, mas o teor dela era sobre aceitar uma possível ajuda da minha parte e assuntos mais amenos. Minha vivência indicava que não dava para “bater de frente” com aquele menino, corria o risco de que ele permanecesse por longo tempo nos seus esconderijos. Por fim, ele aceitou o amparo da minha mão e saiu comigo em busca de se integrar de novo à turma.
Essa professora e eu nos revezávamos no pátio, nos horários dos nossos intervalos, e eu era responsável também pela turma dela naquele momento, assim como ela pela minha, quando era a vez do meu intervalo. Certa vez, num desses momentos, uma menina correu até mim. Ela estava com os olhos arregalados, parecendo apavorada. Atrás dela, corriam sete meninos, e ela gritou: “eles querem me beijar! Todos!” Então, fiz o que costumamos fazer nesses casos: chamei os envolvidos para uma conversa. Hoje em dia, quando isso acontece, vários meninos já dizem que “Não, é não!”, mas na época precisei retomar com as crianças e pontuar que não podemos abraçar ou beijar quem não quer, e o dilema pareceu se resolver.
Corta para 2023, 15 anos depois… As crianças crescem, trilham seus caminhos e voam! Nem sempre temos notícias do que estão fazendo de suas vidas, mas o nosso desejo, cada vez que lembramos delas, é de que estejam bem com suas escolhas, fazendo o que gostam, sendo quem gostariam de ser. E é sempre tão bom reencontrá-las!
Pois em meados do ano de 2021 e parte do ano passado, enfrentei um longo tratamento de saúde e já estava quase em fase final, quando amigos e amigas do grupo de canto Sol de Si, do qual faço parte, me aprontaram uma surpresa, indo até a minha casa e fazendo uma serenata. E o menino aquele, que se escondia nos cantinhos lá em 2008, que é filho de uma das componentes do grupo e hoje professor de violão e contrabaixo, estava lá! Segundo a mãe, fez questão de ir e tocou e cantou a bela canção Luiza, do Tom Jobim, sem saber que é uma das músicas que fazem parte da trilha sonora da minha vida!
A menina aquela que todos queriam beijar é hoje uma dedicada e ativa estudante de Pedagogia e, em breve, será minha colega de profissão. Atualmente, ela faz estágio com crianças da Educação Infantil e é minha colega de trabalho, na Projeto! Quando conversamos sobre o ocorrido naquele longínquo 1º ano, ela nem lembrava mais dos beijoqueiros, por isso acho que as coisas se resolveram naquele dia mesmo…
Dedico este texto, então, à parceira e amiga, professora Beth Milani, e ao Antônio Luz Nader e à Paula Reichelt Dias, ex-aluno e ex-aluna da escola, que me autorizaram a citar seus nomes e a contar essas pequenas histórias. Dedico-o também a todos os ex-alunos e ex-alunas da Escola Projeto, que levaram algo de bom dentro de si, entre aprendizagens, sentimentos e valores, e que nos ensinaram também.
E hoje, depois de tantas batalhas,
a lama do sapato é a medalha que ele tem pra mostrar
Passado é um pé no chão e um sabiá
Presente é a porta aberta
E o futuro é o que virá…
(“Com a perna no mundo”, Gonzaguinha)
(*) Coordenadora Pedagógica da Projeto.