Cristine Zancani (*)
Vez ou outra, a vida adulta nos faz olhar para a infância de modo saudosista/idealizado. Diante das demandas e dos problemas “crescidos” que temos que enfrentar, a infância fica parecendo um tempo sempre feliz e leve. A questão é que enquanto a gente suspira: “oh que saudades que tenho da aurora da minha vida”, a gente esquece o monte de medos e angústias que nos acompanharam na infância.
Quando me tornei mãe, vi minha filha sentir os muitos medos que minha lembrança idealizada da infância me fazia esquecer – mas que eu também já havia sentido. Por sorte, a maternidade aconteceu depois de eu ter dedicado anos estudando algo que acabou sendo fundamental para ajudar minha filha a encarar os medos dela: a literatura para crianças.
Quando a gente fala em “literatura para crianças” impressões pessoais atravessam esse conceito, que estão ligadas a diferentes concepções de infância. O modo como vemos a infância impacta a literatura infantil da produção do texto (a autoria da obra para criança, geralmente, é adulta e a visão de infância de quem escreve vai ficar evidente: para o bem ou para o mal) até o momento de sua recepção.
Parte da escolha dos livros lidos pelas crianças fica a cargo de adultos. Família e escola são as duas pontas que mais participam dessa seleção – e que nem sempre concordam sobre o tipo de leitura a ser oferecida para a infância. Há casos e casos de discordância. Escolhi um recorte: quando as famílias julgam que os textos são inapropriados porque podem causar sofrimento para as crianças.
Este texto é escrito por uma mãe, mas também por uma especialista em literatura infantojuvenil. Estou nos dois lugares: e é com um pé em cada um deles, que quero dizer: confiem nas escolhas da escola diante de leituras julgadas tristes, angustiantes, incômodas etc.
O estudo teórico da literatura infantil – tanto do ponto de vista das questões estritamente literárias, quanto do ponto de vista da psicanálise – aponta para a importância do contato com “leituras desprotegidas”: obras que fazem a criança visitar sentimentos contraditórios, tristezas, medos, melancolias etc.
Os contos de fadas foram as primeiras leituras endereçadas para crianças. Em sua origem, eram histórias que circulavam entre adultos – muito antes da “invenção da infância”. Quem já leu um conto de fadas na sua versão original sabe o tanto de situações violentas e assustadoras que fazem parte dessas narrativas – mas, talvez, não saiba que é recomendado que as crianças entrem em contato com essas versões -, diferentemente das versões suavizadas nas adaptações. Meu foco no texto não são os contos de fadas, mas vou tocar em duas questões que aparecem bastante ligadas a eles para tranquilizar em relação a elas:
- As crianças fazem uma leitura simbólica desses contos. É a gente que imagina as cenas de violência com requinte real de detalhes (até por conta do nosso repertório adulto de imagens violentas. Se tudo der certo, uma criança não tem esse repertório).
- Os contos tradicionais são problemáticos, sim, nas representações femininas – mas uma leitura mediada traz essa questão para discussão. Além disso, esses contos são lidos de forma concomitante com títulos contemporâneos: em que toda diversidade de representações é esperada e bem-vinda.
Trouxe os contos de fadas tradicionais para este texto não só pra evidenciar que a literatura para crianças nasce marcada por lobos, florestas escuras, mortes maternas, desamparo etc., mas também porque a adoção – pela escola – das versões tradicionais desses contos sempre causa preocupação entre as famílias. A mesma preocupação se repete com textos clássicos ou atuais que abordem temáticas consideradas sensíveis.
Entendo, mas quero lembrar que a escolha de obras pela escola está amparada em muito estudo. A escola sabe a importância de ler essas versões – que, geralmente, não são contadas em casa. A escola sabe que a literatura com temática desprotegida não está gerando angústias inéditas – ao contrário, está oferecendo palavras para nomear o que já é sentido; está oferecendo um modo de dar vazão para sentimentos conflituosos que fazem parte da vida e que são tão intensos enquanto a gente cresce. A escola tem uma equipe preparada para fazer essa mediação de leitura. Uma equipe que propõe cada texto a partir de uma intenção: uma escolha é sempre pensada. Uma equipe pronta a ajudar a turma a nomear sentimentos, a falar sobre medos e tristezas e, principalmente, a fundar esperança a partir de cada final feliz. Eu ainda não tinha mencionado, mas no fim dessas histórias tudo se reconstrói. E essa reconstrução tem muita força simbólica. Por isso, se sintam seguros na condução protegida que a escola faz pela literatura desprotegida. Tudo acaba bem: dentro e fora das histórias. No final, as personagens encontram o caminho, o lobo se dá mal, a bruxa se dá mal, a fragilidade é substituída pela força, o desamparo pela confiança. E no final do final: nossas filhas e filhos crescem.
(*) Mãe de ex-aluna, Doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS e coordenadora, junto com Fernanda Lanz, da “Mala.monstro/Viagens literárias”, oficina que acontece na Projeto, semanalmente, no contraturno. Saiba mais: https://www.escolaprojeto.g12.br/vivencias-literarias/ No mestrado, dedicou-se à pesquisa sobre literatura infantojuvenil, enquanto atuava em um projeto de formação de leitores literários na periferia. No doutorado, sistematizou sua experiência de 10 anos de atuação nesse projeto, refletindo sobre a formação de mediadores de leitura para formar leitores. Atualmente, ministra cursos sobre literatura infantojuvenil, realiza trabalhos para editoras e segue atuando em projetos de formação de leitores e de mediadores de leitura.