Celso Gutfreind (2)
Tua mão
No meu seio
Sim não
Não sim
Não é assim
Que se mede
Um coração
Alice Ruiz
A canção se chama “Disparada”. Feita pelo Geraldo Vandré, ficou célebre na voz de Jair Rodrigues. A imagem serve para esta prosa sobre a criança, que também se vale da música materna para fazer o seu nome. E, quanto mais eficaz for a melodia, mas anônima ficará a mãe e conhecido, o filho.
“Prepare o seu coração/Pras coisas/Que eu vou contar”. A criança tornou-se capaz de narrar. Deve mesmo ter havido, lá no começo, aquela mãe cantando em tal harmonia que o filho não precisa ser bonzinho. Pode ser verdadeiro. E acrescenta: “posso não lhe agradar…”.
Ele está longe, na arte, mas a vida não é fácil, e vem mais solavanco: “Aprendi a dizer não/Ver a morte sem chorar”. Os versos sugerem falta de choro, liberdade para expressar-se. Mas a barreira maior vem a seguir: “A morte e o destino, tudo/Estava fora do lugar/Eu vivo pra consertar…”.
Freud foi pioneiro ao detectar o quanto as crianças nascem para resolver a vida dos seus pais. Quando já se idealizava a infância, teve coragem de dizer que o desejo de ser mãe e pai não começa nobre. Trata-se, no início, de uma vontade de não morrer e outra de que o filho resgate o que os pais não puderam ser. Ou seja, viva pra consertar.
Felizmente, a vida nem sempre dispara. Ela também dá um tempo para que os pais, verdadeiros responsáveis pelos consertos, possam rever seus desejos. O começo egoísta volta-se aos poucos para o outro até se tornar capaz de dizer: – Meu filho, podes ser tu mesmo e viver a tua própria história.
O processo parece complicado. E é, porque se chama amor.
Na canção, ele acontece: o bebê crescido precisa assumir a boiada de um boiadeiro que morreu, mas tem a liberdade de fazê-lo só depois de aproveitar a infância. Reinar. Sonhar: “Seguia como num sonho/E boiadeiro era um rei…”.
Seus pais entenderam uma noção afetiva fundamental: “gado a gente marca/Tange, ferra, engorda e mata/Mas com gente é diferente…”.
Sim, com gente é diferente: convém dar muito na largada para separar-se no meio, poder reencontrar-se durante e estar junto, por dentro, até o final. Deixar ser para poder ser verdadeiro. Disparada canta: “Não canto pra enganar”.
Haja talento de ficar tão próximo, permitir crescer e depois partir a ponto de ficar maior do que a gente: “Por qualquer coisa de seu/Querer ir mais longe/Do que eu…”.
Para o próprio Freud, era impossível. Mas a prática também o superou. Volta e meia, vemos filhos capazes de sonhar. E serem livres na disparada de pegar a viola e cantar mais forte noutro lugar.
(1) Texto selecionado do livro A Dança das Palavras – Poesia e Narrativa para os Pais e Professores, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 46 a 48 (https://arteseoficios.websiteseguro.com/loja/detalhe.php?id=341), reproduzido aqui com a devida autorização do autor e da editora.
(2) Pai de ex-aluna da escola, psicanalista e escritor, colaborador deste blog.