Gláucia de Souza (*)
Muitas vezes me questionei sobre o que é afinal poesia. Quando estudamos um pouco de teoria da literatura, deparamo-nos com diferentes conceitos acerca das denominações “poema”, “poesia”, “lirismo” etc. Como professora, busquei esses conceitos. Como escritora também. Até formar um conceito que atendesse ao que queria: ler e escrever poesia.
Uma das minhas maiores preocupações era entender por qual motivo muitas pessoas demonstravam desinteresse em relação à leitura de textos poéticos, quer em forma de poema, quer em forma de prosa poética. Isso me fez refletir sobre alternativas de aproximação entre leitores/escritores e poesia.
A primeira forma que encontrei de redespertar o interesse pela leitura e pela escrita de poemas foi através da aproximação do poema autoral ao poema de matriz oral. Sim! Utilizei o verbo redespertar como parte do título deste texto pois a poesia está desperta em nós deste cedo.
A condição oral do poema está presente no dia a dia de crianças e de adultos, assim como esteve presente no nascimento da lírica ocidental. Afinal, os poemas nasceram como um combinado de sons e de sentidos que englobava palavra, música e corpo. Era assim entre os clássicos e continuou assim na época das cantigas medievais. Até o século XII, a palavra poética circulava na voz dos trovadores, jograis, menestréis, que a traziam em estado de performance, enquanto viajavam e se apresentavam de castelo em castelo, de corte em corte, de localidade em localidade.
30rmada na boca dos nômades, a palavra poética oral espalhou-se e difundiu-se unindo corpo e palavra, plenos de uma sensorialidade que se conservou em muitas das cantigas de nossa cultura popular. Lembro que, quando menina, cantávamos e dançávamos amores desfeitos (“O anel que tu me deste/ Era vidro e se quebrou/ O amor que tu me tinhas/ Era pouco e se acabou), dificuldades materiais (Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré deci”), abandono dos animais (“A carrocinha pegou / Três cachorros de uma vez / A carrocinha pegou / Três cachorros de uma vez / Tra-lá -lá / Que gente é essa / Tra-lá-lá / Que gente má”), sem que nos déssemos conta do que exatamente estávamos cantando, pois o que importava era a sonoridade dos versos, embalados pela música e pelo corpo em movimento.
Sobre a forma como a poesia atua na sensibilidade infantil, José Paulo Paes nos diz que não são só as rimas que prendem a atenção das crianças:
“Outros recursos poéticos também ajudam nisso. Entre eles, as repetições de sons iguais ou semelhantes em palavras próximas; o ritmo dos versos, ora regular, ora variado; as comparações; as oposições de sentido; as simetrias de palavras ou expressões em versos sucessivos; e assim por diante”. (Paes, 1996, p. 26)
Mas a formação do leitor/produtor de poemas não deve se restringir aos jogos de palavra. Poesia é bem mais do que isso. Georges Jean (1995, p. 56) destaca que, apesar de indispensáveis para a compreensão da poesia, tais jogos não devem constituir a atividade poética essencial na escola.
Como seres humanos, nós nos preocupamos com questionamentos acerca de nossa condição: quem somos, de onde viemos, para onde vamos. É a reminiscência que funda a cadeia da tradição (Benjamin, 1985). Desta forma, narrar nossas próprias origens é descobrir nosso próprio eu e perceber que este eu está tramado num nós.
Assim, a poesia, através de seu caráter plural, nos proporciona uma ampla reflexão acerca de nós mesmos. E isso acontece desde a poesia arcaica, que estava presente em todos os momentos da vida humana: o trabalho (cantos laborais), a origem de algo (mitos de criação) e o descanso (canções para adormecer).
Descobrir os diferentes sentidos das palavras de um poema é, por isso, uma tarefa essencial para que o eu leitor se identifique com o eu que se expressa, de modo a se colocar no lugar do outro, reconhecendo em si a “dor” do outro, como já nos disse Fernando Pessoa, em Autopsicografia:
“E os que leem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só as que eles não têm” (Pessoa, 1980, p. 104).
A palavra poética, metafórico instrumento de expressão, é presença indiscutível na vida de todos nós e está na experiência que passa de pessoa para pessoa. Não se trata de entender poesia, mas de vivenciá-la através da oportunidade de leitura e de sua escrita. Basta apenas resdespertar a poesia que nos habita. Como? O próprio poeta José Paulo Paes nos dá a dica:
“Há na poesia um inato poder de sedução. Graças a ele é que podemos intuitivamente chegar a entendê-la e apreciá-la. Basta apenas que a deixemos exercer o seu fascínio sobre nós”. (Paes, p. 27-29)
(*) Gláucia é mãe do Lucas, ex-aluno da Projeto, e autora de muitos livros de poesia, tendo lançado pela Ed. Projeto: Saco de mafagafos, 1997; Astro Lábio, 1998; Tecelina, 2002; Bestiário, 2006; Balaio de ideias, 2007 e Do alto do meu chapéu, 2011. Nasceu no RJ, mas mora em POA desde 1994, quando passou a dar aulas de língua portuguesa e literatura do Colégio Aplicação/UFRGS. Com mestrado e doutorado na área, e aposentada como professora, Gláucia ministra cursos e oficinas, escreve artigos, faz traduções (traduziu o livro Zoo louco, da argentina María Elena Walsh, publicado pela Projeto) e também curso de artes no Atelier Livre.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas; v. I). p.197-221.
JEAN, Georges. Na escola da poesia. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
PAES, José Paulo. Poesia para crianças. São Paulo: Giordano, 1996.
PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. 12ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.