Beth Baldi
Discute-se muito hoje em dia, felizmente, sobre o papel da escola na contemporaneidade: como inserir no cotidiano escolar as tecnologias digitais disponíveis para potencializar os processos de ensino e aprendizagem (*); como lidar com crianças e jovens superprotegidos e com pouco ou nenhum limite; e como auxiliar os alunos na construção de posturas e valores de tolerância, respeito e solidariedade cada vez mais necessários nesta sociedade violenta, individualista e preconceituosa em que vivemos, são apenas alguns dos tópicos que mobilizam educadores, escolas e famílias.
Neste texto, comento apenas um deles – o desenvolvimento de valores elevados para o convívio social cooperativo e democrático –, dando por vencido um dilema inicial, e nem por isso menos importante, sobre o redimensionamento necessário do tempo didático para contemplá-lo de fato, sem deixar esse trabalho ao acaso. É preciso redistribuir esse tempo entre as áreas tradicionalmente bem instaladas no currículo escolar (chamadas de cognitivas ou de conhecimento, como língua portuguesa, matemática, ciência etc.) e a área da socialização (também chamada socioafetiva ou atitudinal), planejando projetos e sequências didáticas específicas a partir de objetivos claros sobre aonde se quer chegar com esse trabalho e o que queremos ensinar, para garantir experiências significativas e resultados efetivos.
Garantido, então, esse espaço, uma das propostas possíveis na direção do trabalho com esses valores é a realização das assembleias de turma, que temos desenvolvido e aperfeiçoado há alguns anos na Projeto, ao lado de outras com objetivos semelhantes: formação de grupos áulicos, jogos cooperativos, rodas de conversa desde a educação infantil, avaliações e autoavaliações de posturas e grêmio de alunos, por exemplo.
As assembleias acontecem periodicamente (semanal ou quinzenalmente), como parte da rotina de cada grupo do ensino fundamental, a partir do 2º ano. São momentos de 30min a 1h em que a turma toda se reúne para conversar sobre determinado(s) assunto(s) escolhido(s) em conjunto, a partir de sugestões que os próprios alunos vão colocando em um envelope coletivo para este fim, conforme vão se dando conta das necessidades do grupo a respeito de situações que não vão bem e precisam ser melhoradas.
É organizado um quadrado com as mesas e cadeiras, de modo que os alunos enxerguem uns aos outros. Depois de decidido o tema, tendo em vista o tempo que se tem e a prioridade dos assuntos apresentados (o que não for possível contemplar em uma assembleia fica para a próxima), passa-se imediatamente à conversa sobre ele, em que os alunos envolvidos e os que desejarem se manifestam, um a um, explicando seus pontos de vista sobre a questão, perguntando o que não entenderam e/ou sugerindo encaminhamentos.
Em forma de rodízio, os alunos vão exercendo diferentes funções nas assembleias: há um aluno (ou dupla) que inscreve os que querem falar e outro(a) que controla o tempo; há aquele que coordena e vai dando a palavra aos colegas e outro(s) que anota(m) os combinados e as conclusões da turma sobre o assunto.
A professora participa como um membro independente (é a única pessoa que pode se manifestar sem estar inscrita, por exemplo, uma vez que está ali para ensinar os procedimentos de uma reunião como essa e garantir que gradativamente os alunos vão adquirindo maior autonomia nas tarefas e posturas necessárias para aproveitar a experiência da melhor maneira) e, sempre que necessário, auxilia os alunos, sobretudo na coordenação dos diferentes pontos de vista visando soluções conjuntas. Faz isso retomando de quando em quando as ideias surgidas e devolvendo ao grupo a reflexão a que chegaram e/ou as dúvidas que ainda restaram, estabelecendo limites sobre a abrangência e a possibilidade de alguma sugestão, reiterando certa regra sobre a qual não se discute, por exemplo, ou reelaborando o problema e voltando à demanda inicial, para poderem se dar conta do que ainda falta pensar. No início da experiência, coordena o trabalho de forma mais direcionada e, aos poucos, vai compartilhando essa tarefa com os alunos, até que cheguem ao 5º ano se coordenando com a maior independência possível.
Os assuntos são variados e vão desde uma dificuldade vivida no recreio, em função de determinado aluno ou grupo que vem atrapalhando a brincadeira de outros(s) ou da falta de materiais ou espaço para a realização de algum jogo, passando por implicâncias diversas vividas entre eles, ou em relação a alguma turma, e situações inadequadas no dia a dia das aulas, entre outras, até problemas relativos a algum trabalho ou com algum adulto da escola, seja professor ou funcionário. E todos eles são acolhidos e tratados pelo grupo, que deve buscar em conjunto as melhores soluções possíveis, respeitadas as regras gerais da escola e da boa convivência.
É necessário, portanto, um trabalho muito atento e constante relativo ao modo de apresentarem o problema e as suas ideias, para que consigam se expressar de forma cada vez mais clara e respeitosa. Os alunos aprendem, fundamentalmente, a dialogar: falar com colegas e adultos, com jeito e sem deixar de lhes dizer a verdade, perguntar e responder mantendo certa lógica e coerência na conversa. Aprendem a ver também o lado bom, mesmo de uma situação difícil, assim como sobre a importância de ouvirem o ponto de vista do outro, ainda que contrário ao seu, buscando formas de aproximar os dois.
A seriedade com que as crianças encaram esses momentos de assembleia e o modo como se comprometem com seu desenvolvimento, avançando significativamente nas relações com colegas e com o grupo, com a escola e com o aprendizado, mostram como essa proposta é potente para construírem aqueles valores elevados de que falávamos. Elas são colocadas numa posição para além da que poderiam assumir sozinhas, manifestando capacidades a princípio improváveis para a sua idade. Alguns adultos, aliás, se espantam quando ouvem sobre esse trabalho, duvidando da possibilidade de realizá-lo com crianças, já que se trata de habilidades complexas e sofisticadas, que eles mesmos, ou muitos de seus pares, não têm desenvolvidas. Mas elas conseguem, sim, e podem iniciar muito cedo a construção dessas atitudes, a partir da troca com seus colegas, instigada e apoiada por adultos responsáveis e experientes, que lhes lançam desafios significativos retirados das vivências das próprias crianças. E, então, respondem de forma muito adequada. É bonito de ver!
Mesmo que não consigam, muitas vezes, manter aquelas decisões tomadas em conjunto, fora da situação da assembleia, o exercício é fundamental, como forma de se apropriarem de procedimentos para chegar a elas e de, progressivamente, irem criando condições de crescente autonomia para manifestá-los em situações diversas. Além disso, os combinados passam a ser uma referência a que se pode voltar sempre que necessário, uma vez que tudo fica registrado. Claro que, a cada vez que são retomados, eles podem ser revistos e ampliados, porque as pessoas envolvidas já terão passado por outras experiências, inclusive pelas experiências cruciais e transformadoras das próprias assembleias, em que são ouvidas, acolhidas e acreditadas pelo grupo que faz sua aposta sempre a favor do outro e buscando seu avanço.
(*) Sobre este tópico, anuncio em primeira mão que teremos no início de setembro na Projeto (dias 2 e 3), um curso com Caroline Bücker, que promoverá uma oficina de empatia e a vivência da metodologia Design Thinking envolvendo a questão da tecnologia no cotidiano escolar.