Celso Gutfreind (2)
Vamos ao tema de novo. Ele é fundamental e sempre volta. Muitos pais estão acusando o livro O Menino que Espiava pra Dentro (3), de Ana Maria Machado (4), de incitar o suicídio. Há pouco tempo, com a obra de outro autor, a queixa era estimular o incesto. Agora, na página 23, o jovem protagonista come uma maçã a fim de entrar no mundo dos sonhos. E nem que bebesse cicuta…
Eu quero é tocar fogo nesse apartamento, cantou o verso de Chico Buarque através da música, essa arte mais popular. E, justamente por cantá-lo, não há de incendiar coisa nenhuma. Atos violentos – homicídio, suicídio, feminicídio – costumam ocupar justamente o espaço onde faltou pensamento e sentimento. O suicídio em adolescentes é uma situação grave e cada vez mais frequente. Mas não tem a ver com a presença de nenhuma arte e sim com a falta. De mentalização. Subjetividade. Passado o entusiasmo do Iluminismo, hoje sabemos que o ser humano age em função do que não sabe. Age por impulsos, a não ser que os conheça melhor.
A psicanálise é uma forma de conhecê-los. A arte é outra, mais antiga e maior ainda: não à toa, alimentou e alimenta a psicanálise, embora ambas tenham lacunas, como o escritor Saul Bellow explicou para o colega Philip Roth a propósito de artistas que não deixam de sofrer e até mesmo de cometer o suicídio. No entanto, poder expressar é meio caminho andado para não fazer besteiras maiores no caminho. Para não agir ou agir bem.
Um menino que morde uma maçã e zarpa do real para o simbólico jamais incitaria o suicídio. E nem que fosse uma cena de algum suicídio em si como, séculos antes, em Goethe com seu Werther. A onda de suicídios que o sucedeu assinala a falta precedente de mais werthers, de mais literatura, de mais símbolos. Arte não incita suicídio, racismo, fascismo, barbárie. A falta dela é que nos torna vulneráveis.
Passados duzentos e cinquenta anos, a situação piorou. Pais aparentemente esclarecidos reclamam de cenas de maçãs mordidas. Ou de sexo. E saem postando nas redes sociais o que ainda não é símbolo e nem terá tempo de ser, já que outra postagem impulsiva o sucede logo em seguida. E, fora do símbolo, não há salvação.
(1) Texto publicado originalmente no jornal ZH, de 29 e 30/9/2018.
(2) Psicanalista e escritor, pai da ex-aluna Mariana e colaborador deste blog. Sua publicação mais recente é A arte de tratar – por uma psicanálise estética (Artmed, 2018).
(3) Clássico moderno da literatura infantil brasileira, publicado em 1983.
(4) Escritora carioca, com mais de 100 livros publicados em 40 anos de atividade, ocupa a cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras e já recebeu muitos prêmios importantes, dentre os quais o Hans Christian Andersen, pelo conjunto de sua obra infantil (2000). Para saber mais sobre a autora e seus textos: http://www.anamariamachado.com