Gerson Smiech Pinho (2)
Antes de chegar ao mundo, uma criança tem seu lugar tecido e antecipado pelos sonhos daqueles que desejaram seu nascimento. A infância é esse tempo no qual o pequeno sujeito humano encontra-se envolto pela trama de fantasias e ideais de quem um dia o acolheu. É esse conjunto de sonhos, que embala e acalenta os primeiros anos de vida, que tornam viável a existência.
A adolescência é o momento seguinte, em que se toma o que foi sonhado por outros, para sonhar e agir em nome próprio. Época de ebulição de forças, recheada de grandes movimentos e mudanças.
Nunca me Sonharam, documentário dirigido por Cacau Rhoden, dá voz aos sonhos protagonizados por diversos jovens que frequentam o Ensino Médio nas escolas públicas brasileiras. Ao percorrer diferentes estados do país, o filme revela o que pensam estudantes, professores, gestores, pesquisadores e especialistas a respeito da realidade que responde pela educação de mais de oitenta por cento dos adolescentes que habitam o território nacional.
A expressão que dá título ao documentário é proferida por um estudante de Nova Olinda, cidade no interior do Ceará. Enquanto pedala sua bicicleta pelas paisagens do lugar onde vive, escutamos sua narrativa sobre os projetos que sua família endereçava a ele: – Acho que nunca me sonharam sendo um psicólogo, nunca me sonharam sendo um professor, nunca me sonharam sendo um médico. Eles não sonhavam, não me ensinaram a sonhar.
Segundo seu depoimento, tanto o sonho quanto as condições para sonhar não nascem de forma autônoma, mas tem sua origem em quem o antecedeu. São passíveis de transmissão.
No ingresso de um sujeito na cultura, a adolescência constitui um prolongado rito de passagem, que leva o jovem desde a família até o trânsito social mais amplo. É nessa época da vida que se estabelece a distância da tutela parental da infância e se passa a ser interpelado a agir e a responder em nome próprio. Nessa passagem, a educação aparece como um espaço fundamental de inclusão dos jovens.
O documentário destaca os impasses vividos quando o campo social não reserva um lugar para o sujeito, quando o processo de inscrição do adolescente na cultura confunde-se com o próprio trabalho subjetivo para lidar com a exclusão. Revela como as condições de vulnerabilidade social podem ser limitantes das possibilidades para sonhar e construir um projeto futuro para si.
O discurso individualista contemporâneo prescreve que cada sujeito necessita dar conta solitariamente da construção de seu lugar na cultura, considerado como único responsável pelo seu próprio destino. Em um dos depoimentos do documentário, um rapaz expressa a violência dessa condição, ao representar o que considera ser a essência da meritocracia: – Você faz uma corrida para chegar no topo do prédio, só que o cara tá largando do quinto andar e eu tô largando do subsolo. E ele vai de elevador.
Ao mesmo tempo que o filme retrata o abandono de muitos jovens brasileiros através do descaso com a educação pública no país, a escola também aparece como a chave possível para a abertura de portas. Alguns depoimentos revelam o potencial inventivo do espaço educativo, desde a escola no interior do Piauí que conquistou diversas medalhas em olimpíadas de matemática até o professor que usa o próprio prédio da escola para ensinar geometria. Ao deixar um pouco de lado o formato convencional da educação para mergulhar na experiência daqueles que aprendem e que ensinam, a escola se estabelece como lugar onde o sonho e a criação passam a ser possíveis, como território de transmissão simbólica.
O psicanalista inglês Donald Winnicott denomina de espaço transicional à zona de intersecção entre a fantasia e a realidade, entre o mundo interno e o externo. Território de experimentação e criação, constitutivo de cada sujeito, inclui desde o brincar das crianças até a produção cultural. Nessa direção, ao ofertar um campo rico de experiências, sustentado pelo desejo dos educadores, a escola se inscreve nessa zona que torna viáveis a transmissão do sonho e da criação.
Ao falar sobre o que se antecipa e se transmite no ato de educar, um dos professores ouvidos no filme lembra da colheita das tâmaras. Segundo ele, essa espécie vegetal ao ser plantada hoje, terá seu fruto colhido em cem anos. Quem planta não colhe. Mas para que um dia a colheita aconteça, é necessário que o ato do plantio se dê no dia atual.
(1) Texto publicado no Sul 21, Coluna APPOA, em julho 18, 2017.
(2) Pai de ex-alunas da escola, Psicanalista e membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat.