Gláucia de Souza (*)
EMERGÊNCIA
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
– para que possas, profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
(Mario Quintana, Apontamentos de história sobrenatural, 2005, p. 46)
Esse poema, de Quintana, faz-nos pensar sobre a importância do poema como forma de expressão e de reflexão, tanto para quem o escreve, quanto para quem o lê. O autor fala do que primeiramente chega aos ouvidos de quem tem contato com um texto poético: o ritmo.
O ritmo guia o poema e nos remete aos tempos em que poema e música caminhavam juntos. Esse tempo, aquele dos rapsodos gregos, posteriormente dos trovadores e suas trupes, até hoje está presente no universo da infância. Convido todos vocês a fazerem um exercício de memória: como foram os primeiros contatos de vocês com os poemas? Na minha memória, vêm logo os versos “Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marré. Eu sou pobre, pobre, pobre de marre de si.” E atrás deles uma fila de “filhos” que passávamos de um lado ao outro, dançando e cantando em roda…
Sim, o poema nos chega aos ouvidos pela primeira vez na infância, através das brincadeiras musicadas: as cantigas de roda, as de ninar, os trava-línguas, as adivinhas, enfim, todo um repertório herdado da tradição oral. Essa tradição corre de geração em geração e chega até a escola, espaço onde, algumas vezes é tida como de menor valor. Entretanto, o que hoje chamamos de poesia destinada à infância, com a qual, como professores, convivemos, transita por poemas de folclore puro (aqueles de tradição popular), poemas de inspiração folclórica (aqueles que, mesmo tendo sido criados por um determinado autor, apresentam características dos poemas de folclore puro) e poemas autorais (aqueles que não apresentam características semelhantes aos poemas de folclore puro).
Para nós, os poemas de folclore puro são aqueles que primeiro nos chegam, quando ainda não sabemos ler, quando ainda brincamos com os amigos soltos pelas ruas, quando ainda ouvimos quem cuida de nós cantar para que durmamos… Mas, com a perda gradativa dos espaços de socialização (praça, ruas, jardins etc.), é cada vez mais difícil que essa tradição oral circule entre os pequenos.
Como substituir, então, os versos brincados que preenchiam os dias de infância? Para Perrotti, em seu texto “A criança e a produção cultural” (1990), é impossível que, por melhor que seja, qualquer produção cultural para a infância substitua os espaços de interação e experimentação perdidos pelas crianças com o crescimento das cidades. Resta, então, a essa produção ser memória, resgate do que foi perdido.
E, nesse sentido, confirma-se a importância de a poesia ter na escola um lugar de honra, com muitas leituras, brincadeiras e explorações variadas, que a coloquem no dia a dia das crianças e jovens.
Como uma sugestão, indico o livro Canções, de Mario Quintana. Publicado pela primeira vez em 1946, ele apresenta uma coleção de trinta e cinco composições, muitas das quais retomam poemas populares de folclore puro, tais como as cantigas de ninar e de roda e as quadras. Outras são de inspiração folclórica, quando o autor retoma o universo da poesia popular, mas conferindo um forte tom subjetivo autoral aos seus poemas. Um livro especial, a partir do qual trarei, no próximo texto (parte 2), algumas reflexões que poderão inspirar propostas de trabalho com seus poemas. Até lá!
(*) Gláucia é a autora convidada da escola neste ano, e sua obra está sendo lida e trabalhada por todas as turmas. Seu 1º livro foi publicado pela Ed. Projeto – Saco de mafagafos, em 1997 -, com a qual lançou ainda Astro Lábio, 1998; Tecelina, 2002; Bestiário, 2006; Balaio de ideias, 2007 e Do alto do meu chapéu, 2011. Tem vários outros livros publicados por outras editoras, a maior parte deles de poesia. Nasceu no RJ, mas mora em POA desde 1994, quando passou a dar aulas de língua portuguesa e literatura do Colégio Aplicação/UFRGS. Com mestrado e doutorado na área, e aposentada como professora, Gláucia ministra cursos e oficinas, escreve artigos, faz traduções (traduziu o livro Zoo louco, da argentina María Elena Walsh, publicado pela Projeto) e também curso de artes no Atelier Livre. E, além de tudo isso, Gláucia é mãe do Lucas, ex-aluno da Projeto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PERROTTI, Edmir. A criança e a produção cultural. In: Zilberman, Regina (org.). A produção cultural para a criança. 4 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. p. 9-27)
QUINTANA, Mario. Apontamentos de história sobrenatural. São Paulo: Globo, 2005.
QUINTANA, Mario. Canções. 2ed. Porto Alegre: Globo, 1982