Gláucia de Souza (*)
Como prometido, reflito nesta 2ª parte do texto, sobre o livro Canções, de Quintana. A começar pelo título Canções, palavra presente nos trinta e cinco poemas originais do livro, percebe-se a aproximação da obra de Quintana com o universo da música e da dança. Ouçamos, por exemplo, o poema “Canção de muito longe”:
Foi-por-cau-sa-do-bar-quei-ro
E todas as noites, sob o velho céu arqueado de bugigangas,
A mesma canção jubilosa se erguia.
A caoooavirou
Quemfez elavirar? uma voz perguntava.
Os luares extáticos…
A noite parada…
Foi por causa do barqueiro,
Que não soube remar.
O verso inicial “Foi-por-cau-as-do-bar-quei-ro”, dialoga com a cantiga de roda “A canoa virou”. Nesse poema, o eu que se expressa resgata da memória de infância uma noite de brincadeiras: noite, dança, o mesmo canto, tudo pára em êxtase para a recordação infantil.
Em Canções, o poeta também utiliza formas poéticas de origem popular, tal como se observa na quadra “Canção de Inverno”:
“Pinhão bem quentinho!
Quentinho o pinhão!”
(E tu bem juntinho
Do meu coração…)
(Quintana, 1982, p.93).
Eminentemente popular, a forma poética quadra está presente na tradição cultural de todo o país. Em Santa Catarina, os “pão-por-Deus” (pedidos formulados em versos, geralmente quadras, escritos em papéis cortados em forma de coração e distribuídos na primavera) são exemplo de circulação de quadras populares. As quadras dos “pão-por-Deus” expressam pedidos, na maioria das vezes amorosos, como a quadra de Quintana. São exemplos de versos de pão-por-Deus:
Lá vai meu coração
Já que eu não posso ir
Vai levar lembranças minhas
Pão-por-Deus vai lhe pedir.
Lá vai meu coração
Entre cravos e cravinas.
Vai pedir o pão-por-Deus
Àquela linda-menina.
(PIAZZA, Valter F., 1956)
Um outro poema do livro Canções, “Canção de domingo”, de inspiração folclórica, proporciona-nos uma outra associação com textos de folclore puro, dessa vez, com as adivinhas:
Que dança que não se dança?
Que trança que não se destrança?
O grito que voou mais alto
Foi o grito de criança.
Que canto que não se canta?
Que reza que não se diz?
Quem ganhou maior esmola
Foi o Mendigo Aprendiz.
O céu estava na rua?
A rua estava no céu?
Mas o olhar mais azul
Foi só ela quem me deu!
(Quintana, 1962, p. 71)
Nesse poema, as perguntas “Que dança que não se dança?/Que trança que não se destrança?”, “Que canto que não se canta?/Que reza que não se diz?” aproximam-se da forma como se apresentam muitas das adivinhas, como estas, coletadas por Sebastião Almeida Oliveira e publicadas em Literatura oral no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo:
Que é que tanto mais cresce menos se vê?
– a escuridão
Passa de noite sem parar?
– o rio.
(Câmara Cascudo, 1978, p, 70)
Ao se aproximar da fórmula das adivinhas, Quintana, em “Canção de domingo” (título que, por si só já nos evoca a parlenda “Hoje é domingo…”), lança ao leitor suas perguntas enigmáticas. Contudo, ao contrário das adivinhas, possivelmente, tais perguntas do poema “Canção de domingo” não possuam resposta. Diante da dúvida em saber qual a dança que não se dança, qual a trança não se destrança, qual o canto que não se canta e qual a reza que não se diz, o leitor é posto frente-a-frente com três únicas certezas “O grito que voou mais alto/ Foi um grito de criança”, “Quem ganhou maior esmola/ Foi o Mendigo Aprendiz” e “(…) o olhar mais azul/ Foi só ela quem me deu!”. Tais certezas são igualmente enigmáticas.
Mario Quintana, então, através de seu livro Canções, retoma o universo da poesia popular, mas conferindo aos seus poemas um forte tom subjetivo autoral. Nesse sentido, ao trabalhar com os poemas do referido livro em sala de aula, o professor tem nas mãos a oportunidade, através do resgate da linguagem primitiva dos alunos, aquela que rememora a tenra infância e as experiências sensoriais e corporais, de chegar à leitura e à escrita de poemas autorais mais subjetivos.
Como isso seria possível? Através, também, do resgate do corpo e da voz perdidos em nossa infância: através de leituras em voz alta, da descoberta do diálogo entre textos feita entre professores e alunos (no caso de Canções, os textos de folclore puro a que cada poema nos remete), através do resgate do ritmo do poema (através de atividades de leitura ritmada), a que o próprio Quintana se refere como “forma de nos fazer respirar”.
Sem dúvida, ler e escrever devem ser a viagem empreendida por aqueles que frequentam a escola. Viagem essa mediada por professores, diretores, bibliotecários, todos os profissionais vinculados à educação. No caso da leitura e da produção de poemas, assim como Quintana fez em Canções, cabe a nós, professores, resgatar do universo oral dos alunos a emoção necessária à compreensão e à escrita através dos poemas orais (cantigas de roda, de ninar, parlendas, adivinhas, quadras populares), para, então, aproximar leitores jovens e crianças da poesia escrita de origem autoral.
Encerro, então, ainda com a ajuda da memória de vocês (todos cantam a canção “Se essa rua fosse minha”!) e de outro poema de Quintana:
CANÇÃO DA RUAZINHA DESCONHECIDA
Ruazinha que eu conheço apenas
Da esquina onde ela principia…
Ruazinha perdida, perdida…
Ruazinha onde Marta fia…
Ruazinha em que eu penso às vezes
Como quem pensa numa outra vida…
E para onde hei dede mudar-me, um dia,
Quando tudo estiver perdido…
Ruazinha da quieta vida…
Tristonha… tristonha…
Ruazinha onde Marta fia
E onde Maria, na janela, sonha…
(Quintana, Mario. Canções. Porto Alegre: Globo, 1946)
(*) Gláucia é a autora convidada da escola neste ano, e sua obra está sendo lida e trabalhada por todas as turmas. Seu 1º livro foi publicado pela Ed. Projeto – Saco de mafagafos, em 1997 -, com a qual lançou ainda Astro Lábio, 1998; Tecelina, 2002; Bestiário, 2006; Balaio de ideias, 2007 e Do alto do meu chapéu, 2011. Tem vários outros livros publicados por outras editoras, a maior parte deles de poesia. Nasceu no RJ, mas mora em POA desde 1994, quando passou a dar aulas de língua portuguesa e literatura do Colégio Aplicação/UFRGS. Com mestrado e doutorado na área, e aposentada como professora, Gláucia ministra cursos e oficinas, escreve artigos, faz traduções (traduziu o livro Zoo louco, da argentina María Elena Walsh, publicado pela Projeto) e também curso de artes no Atelier Livre. E, além de tudo isso, Gláucia é mãe do Lucas, ex-aluno da Projeto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1978.
PIAZZA, Valter F. Boletim catarinense de folclore, ano VI, nº 22, Florianópolis, janeiro de 1956 – disponível em http://jangadabrasil.com.br/outubro38/cn38100a.htm , acesso em 27 de maio de 2006.
QUINTANA, Mario. Canções. 2ed. Porto Alegre: Globo, 1982.