Cristine Zancani (*)
A paixão pela leitura é tema do conto Felicidade clandestina, de Clarice Lispector. Na obra, a dificuldade de acesso a um livro é descrita ao longo de muitas linhas, para que a narradora possa dimensionar a felicidade experimentada quando, finalmente, consegue ter o título sonhado em mãos. Reserve essa informação.
Minha filha tem treze anos e andava mais afastada da leitura: o que é particularmente tenso para uma mãe que trabalha formando leitores. Uma mãe que trabalha mediando leituras literárias porque acredita que o contato com o que Antonio Candido chamou de “força da palavra organizada”, se referindo ao discurso literário, faz uma diferença imensa no modo da gente olhar para a gente e para o mundo.
Sei que o processo de formação de leitores tem seus altos e baixos e que mesmo leitores adultos, que já tem o hábito da leitura consolidado, podem viver períodos de distanciamento dos livros. Quem, diante de certas demandas da vida, já não perdeu a concentração necessária que a leitura exige? Quem, por algum motivo, já deixou de conseguir acessar o silêncio interno que determinadas obras pedem para que possam ser lidas? Tais fatos acontecem e são da vida de leitores – que alternam fases de muita ou pouca leitura -, incluindo também certos momentos em que ler parece impossível.
Se sei de tudo isso, por que tanta aflição com a ausência de leitura da filha? Talvez, porque a geração dela foi atravessada bruscamente pelo excesso de telas a partir da pandemia (só eles?). E esse atravessamento (entre tantas coisas) rompeu laços, que se davam de forma mais constante, com a leitura. Rompeu laços de leitores ainda em formação. Então, fica o medo de que a volta para os livros deixe de ser possível. A boa notícia é que os livros são feitos de histórias e que histórias nos movem (e comovem) há muito tempo. Então, voltar a se interessar pelos livros/a ler pode depender de encontrar a história “certa”.
Semanas atrás, a filha chegou com um livro retirado da biblioteca da escola. Um best seller adolescente. Muita gente acha que algumas leituras não são leituras, e que os livros que viram febre entre uma geração não têm qualidade alguma. Adianto que podem ter, sim – ou podem não ter mesmo. Em qualquer uma das hipóteses, duas coisas são fato:
- Esses livros têm uma importância imensa no processo de formação de leitores. Ninguém começa seu percurso de leitura por Crime e Castigo. Até chegar lá, tem muita literatura “menor” no caminho. Até chegar lá, o importante é viver esse outro tempo que a leitura propõe. Experimentar e exercitar a entrega silenciosa e a concentração demorada, quase incompatível com tanta urgência e aceleração vivida neste agora.
- Os adolescentes podem fazer leituras significativas e profundas de obras que a gente desqualifica. Na obra La lectura en los jóvenes: cultura y respuesta, Charles Sarland, entrevista jovens a respeito de sua recepção de livros de literatura “menor”. A partir das entrevistas, ele constata que os jovens fazem inferências elaboradas mesmo nas obras de conteúdo mais simples. Tem muita dor e delícia da adolescência evidenciada na leitura da entrelinha. Para o autor é fundamental que os adultos não desconsiderem essas leituras e as utilizem como base para ampliar o acervo.
Enfim, minha filha está bem envolvida na leitura do best seller adolescente e suas quase 400 páginas. Então, começou a me dizer que estava achando ruim o livro ser da biblioteca, pois ela estava com muita vontade de sublinhar algumas partes. Para resolver a vontade, estava fotografando as páginas que continham as frases que gostaria de guardar.
Hoje, ela pediu para comprar o livro. Na livraria/papelaria comprou também canetas marca texto. Enquanto ela pagava, eu seguia olhando as estantes. Até que, de longe, vi ela sentar no café da livraria. Vi ela pegar o celular e procurar algo nele. Entendi que ela abriu a galeria de fotos, localizou as imagens que tinha feito durante a leitura e começou a marcar as frases no livro recém comprado. Vi o amor pela leitura vivo e se derramando pelas marcas feitas no texto. Vi o amor pela leitura no desejo de ter aquele livro só pra ela. Fiquei olhando a cena e vendo na minha filha a menina de felicidade clandestina. Mais do que isso: fiquei olhando a cena e me sentindo a menina de felicidade clandestina também.
(*) Mãe de ex-aluna, Doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS e uma das coordenadoras da oficina “Mala.monstro/Viagens literárias”, que acontece na Projeto, semanalmente, no contraturno.