Denise Hennemann (*)
Desde que começou a pandemia, passamos a assistir aos telejornais com mais frequência. Entramos neste ritmo frenético querendo controlar o mundo com números e gráficos, e se antes os mapas mostravam apenas a previsão do tempo, hoje eles contabilizam perdas e sonhos. Todos os dias nutre-se a esperança de ver os números caindo, o mapa mudando de cor e a antiga normalidade voltando. Seguimos, porém não sem percalços.
Pois foi nesse frenesi pandêmico que Joaquim acabou descobrindo e explorando um novo hiperfoco: a grade de programação da TV. Horários de início e término dos programas. Jornalistas âncoras de telejornais. Parece banal, mas nada é mais tranquilizador para um autista que uma rotina descrita. Desde 2014, quando ele recebeu o diagnóstico de autismo, lemos muito sobre o assunto. Para além de nossa preocupação quanto ao seu desenvolvimento e autonomia, buscamos profissionais para auxiliar na linguagem, na parte motora e comportamental. Também buscamos uma escola que pudesse não apenas acolhê-lo, mas exercer de fato o papel de intermediadora do desenvolvimento e aprendizado.
Mas o transtorno do espectro autista, como o nome já diz, é um espectro, e nos direciona para infinitas possibilidades. Nenhum autista é igual a outro, e justamente por não existir um padrão é que precisamos focar na individualidade, valorizando o ser humano como criatura única que é: seus gostos, interesses, angústias e sua forma de compreender o mundo.
O fato de Joaquim estar absorto na grade de programação da TV fez com que ele buscasse também informações no YouTube: ele assiste aos programas mais antigos, observa a variação dos estúdios e do logo do telejornal no decorrer do tempo, e também a mudança dos apresentadores. E passa horas fazendo desenhos relacionados a esse assunto – e exercitando a motricidade fina! E passa horas assistindo ao YouTube – e exercitando suas habilidades em tecnologia! Por outro lado, acaba passando horas sem exercitar a leitura, sem ampliar o vocabulário, e neste momento um alerta é emitido: precisamos mudar isso, urgentemente!
Não é simples abandonar a tecnologia. Ela é fácil e viciante, sabemos. Mas, como pais, temos uma responsabilidade implícita e intrínseca para que a formação de um filho seja a mais proveitosa possível. Está no papel da família contribuir para que a leitura seja desenvolvida, por exemplo, porque definitivamente a escola não anda sozinha. É fundamental que caminhemos juntos, sempre, não apenas por estarmos tratando de uma criança com desenvolvimento atípico, que demanda mais tempo e atenção, mas porque temos amor: amor no sentido de interessar-se pelo crescimento do outro e valorizá-lo como indivíduo.
Aqui já aprendemos que precisamos aproveitar o hiperfoco e fazer dele um aliado. Nem sempre o resultado é satisfatório, mas precisamos tentar. Assim, resolvi procurar um livro sobre o telejornalismo brasileiro. E encontrei. E quando ele chegou às mãos de Joaquim, teve olho brilhando, e não era só o meu. E em menos de um minuto ele saiu do YouTube, desligou a TV e começou a ler. Na sequência, começou a nos perguntar o significado de diversas palavras que brotaram da leitura: êxito, longínquo e ausência, entre outras. Foi lindo vê-lo debruçado na cama, sobre o livro, mudando de posição para tentar ficar confortável, mas sem largar o livro em momento algum. Ficou ali por mais de hora.
Eu ganhei o dia e a noite também. E tenho ganhado, diariamente, ao ver que ele está se desenvolvendo, e que tem capacidade de ampliar suas potencialidades. Isso só é possível porque em nosso meio há pessoas que aceitam e respeitam as diferenças; porque há famílias que educam seus filhos para compreender tais diferenças; porque há profissionais sérios que conseguem melhorar a qualidade de vida das pessoas com autismo; porque há escolas que recebem os alunos de inclusão de braços abertos, com profissionais que se abaixam para conversar com as crianças e mergulhar nesse mundo cheio de possibilidades, onde ganha quem dá e também quem recebe.
Nem sempre é fácil, mas não podemos desistir. O mundo está carente de humanidade. É preciso aceitar, respeitar e valorizar o ser humano, sempre, pois tão importante quanto ler livros é ter habilidade para ler as pessoas.
(*) Mãe do Joaquim, aluno do 4º ano da escola.