Beth Baldi (1)
Com esse título foi ao ar no último domingo, 10/9/23, pela TV Cultura, mais um Café Filosófico CPFL, programa tradicional, já com 20 anos, da emissora. Em geral são programas muito bons, com especialistas renomados(as) em suas áreas, que nos proporcionam reflexões e aprendizados interessantes. Mas esse foi especial, com a psicanalista Julieta Jerusalinsky trazendo questões cruciais da contemporaneidade relacionadas à infância.
Aproveito, então, este espaço do nosso blog para compartilhar com vocês – pais, mães, tios(as), avós e professores(as), dentre outros adultos que convivem com crianças – algumas das questões que mais me tocaram, convidando-os(as) a assistirem ao programa, que fica disponível no canal do Youtube da emissora, como todos os outros que já foram ao ar (2).
Uma das situações trazidas se refere aos diagnósticos prematuros, hoje tão comuns, às vezes feitos pelos próprios pais e mães a partir de listagens de sintomas lidos na internet. Algo absolutamente danoso, porque, descontextualizado e reducionista, suprime o tempo e o lugar de observação do bebê/da criança por esses adultos, de se perguntarem sobre o que ele(ela) está fazendo, sobre o que será que está buscando, pensando, sentindo. São ‘checklists’ que induzem a prognósticos de patologias, podendo causar um dano absurdo ao enquadrar as crianças e traçar destinos, em vez de possibilitar olhares mais atentos a elas, buscando conhecê-las mais a fundo e “ler” nelas o que não estaria se estruturando ou em que elas precisariam de ajuda para sua estruturação. Sim, porque o diagnóstico que importa, segundo a psicanalista, é aquele que diz que a criança/o bebê “não está bem”, “precisa de ajuda”, abrindo possibilidades de se enxergar/encontrar/ampliar brechas e produzir saídas, não aquele que reduz a um nome algum comportamento seu.
Não se trata, então, de dizer que o diagnóstico não é importante, mas sim de relativizar sua importância, alertando para o fato de que ele é apenas um instrumento, e nem sequer o único. Tão ou mais importante é conhecer o contexto e os significados, os gostos do bebê/da criança, em um acompanhamento longitudinal que busque entender o que se passa e como acontecem as interações na vida dele(a).
Outro assunto inevitável, mas aqui abordado de forma um pouco mais profunda, ao meu ver, é o uso das telas ou a chamada “intoxicação eletrônica”, que começa, segundo Julieta, na situação recém relatada, dos pais indo ir ao “Dr. Google” em vez de buscar experiências de encontro com seus bebês, ou, ainda, da sua própria dificuldade em largar o celular…
Defende que regular o uso das telas não implica simplesmente em dizer sim ou não às crianças. É preciso, claro, fazer objeção, mas, antes de tudo, é preciso estar com o outro: permitir e dar espaço para que a criança esteja com seus familiares e para que eles estejam com a criança, de modo que ela possa andar pelo mundo e demandar, sem que essas demandas sejam aplacadas por alguma tela. Explica que, quando a criança demanda, ela faz com que os adultos revejam sua própria infância e ofereçam a ela elementos referenciais e de encontro que, se não, ficariam adormecidos, perdidos ou esquecidos.
Reflete que dizer não para uma criança pode ser menos complicado que dizer não para si mesmo(a) e guardar seu próprio celular, quando se convive com uma criança, passando a estar disponível para ela. As cenas, cada vez mais comuns, em restaurantes, por exemplo, de famílias inteiras olhando para o celular revelam a pouca disponibilidade para o outro.
“- Se buscamos o olhar do outro e esse olhar se encontra no celular, o que fazemos?” – ela pergunta.
E responde:
“- A gente diz ‘ah, deixa pra lá’, e desiste da relação!”
E esse é o verdadeiro problema, segundo a psicanalista: o celular (ou qualquer outra tela) ser visto como “a máquina de rechear tudo”. E alerta: a maior chance que a gente tem de acertar é se perguntar/pensar: “no lugar de que este celular está?”. Normalmente, esse lugar é o de impedir avanços naquilo que nos produz questões ou dúvidas, ou seja, impedir o exercício inventivo diante da falta. Isso tanto para nós, adultos, quanto para as crianças.
Sim, porque o brincar com o outro dá muito mais trabalho para a criança do que realizar qualquer jogo numa tela, por exemplo, em que ela resolve as situações simplesmente apertando um botão: ela tem de dizer o que está pensando e imaginando, ouvir o outro, combinar, negociar, ou seja, fazer transposições de registros, o que vai gerar, por sua vez, muitas aprendizagens importantes, tornando essas atividades de brincar e de conversar especialmente ricas.
Relacionando essa situação também com as consequências da pandemia e com a privação que ela causou às crianças em relação ao tempo de convívio, de estar com seus pares e de brincar, a psicanalista reforça a riqueza dessas experiências de socialização e de encontros, absolutamente estruturantes e, portanto, imprescindíveis de serem vividas pelas crianças, o que vai de encontro a experiências restritivas do chamado ‘homeshooling’, em que os pais são os detentores do saber.
Julieta Jerusalinsky comenta, ainda, entre outras questões, sobre a importância de cuidar de quem cuida, do espaço para as mães e pais expressarem suas dúvidas, inseguranças e medos, dispondo de interlocuções para não transformarem dificuldades em sintomas. Da mesma forma, é fundamental os(as) professores(as) serem valorizados(as) e o que acontece nas escolas ser levado a sério, já que são esses adultos e é esse o espaço em que as crianças têm estado por mais tempo. Nesse contexto da escola, fala sobre a importância da contação de histórias, do folclore, da cultura e da sustentação dos hábitos coletivos, além do brincar, claro, defendendo que se ofereça às crianças, desde a educação infantil, “a mais fina flor da cultura”, para que ela possa ir sondando e descobrindo onde seus prazeres se engatam com a realização cultural.
Finalmente, destacamos sua ideia sobre a infância estar sendo atropelada por realizações cada vez mais performáticas – incentivadas por pais e mães e, algumas vezes, também por escolas que se rendem às suas exigências ou pressões pela preservação do narcisismo infantil -, produzindo crianças adaptadas, mas não estruturadas, para as quais, na primeira volta da vida em que haja uma encrenca, compareça ali um desarranjo de algo que não estava efetivamente amarrado/estruturado.
Assim, conceber a criança como sujeito epistêmico ativo que se interroga, sabendo que interrogar os saberes do mundo é o modo como ela irá construir/produzir seus próprios saberes, é o ponto de partida da escola que deseja que a criança construa elementos básicos da cidadania, aprendendo com os outros as regras do coletivo, lidando com a diversidade e preservando os encontros inventivos que a intimidade de cada sala de aula pode oportunizar a alunos(as) e professores(as). Aliás, adorei essa expressão “encontros inventivos”, porque ela fala de criar com as crianças algo que seja único em cada grupo, que seja significativo a ponto de ser marcante e ficar guardado como boas lembranças, o que dificilmente vai acontecer quando existe uma padronização no ensino-aprendizagem, uma rede rígida que impõe apostilas, por exemplo, para ensinar a todos(as) da mesma forma e onde não há espaço de escuta às crianças.
Espero que possam assistir ao programa e curti-lo!
(1) Diretora pedagógica da Projeto.
(2) Aqui o link do programa, a partir do qual poderão acessar outros tantos, inclusive outros com a própria Julieta: https://www.youtube.com/watch?v=XnoXjxod9q0&t=9s