Celso Gutfreind (**)
“Quando as coisas estão se esfacelando, o ato mais intencional talvez seja sentar-se e ficar quieto… Nem sempre é necessário, além do mais, proferir a verdade”. (Henry Miller)
O menino de três anos voltou da escola e pediu a mãe em casamento. Freud revirou-se na tumba e, mesmo feliz da longevidade de seus insights, lamentou não poder ser o padrinho. A mãe tinha duas opções principais. A primeira era responder “sinto muito, eu sou casada com o teu pai, tu és apenas uma criança, crianças não casam, mas tu crescerás e, um dia, quando fores adulto, poderás amar outra mulher que não eu”. Poderia acrescentar: “os amores não são pra já”, citando Chico Buarque. Ela, por exemplo, também preferia ter casado com o Chico Buarque.
A mãe no caso fez diferente e aceitou o filho em casamento. Antes perguntou o que era casar para ele que respondeu assim: piscou os olhinhos e se aninhou nos braços dela. Bocejou. Dormiu. Sonhou. Não teve outro ritual, não teve cerimônia, Freud não foi o padrinho e voltou a dormir profundamente como num poema do Bandeira. Mas a cena deu uma lição de psicanálise e poesia. E de interpretação.
A interpretação pode não ser mais um carro-chefe da psicanálise, mas a psicanálise tem carros-chefes? A minha tem. O olho de olho no inconsciente, o essencial da cena na transferência. A interpretação, não. Ela dorme. Ela hiberna, mas não saiu de cena como não tinha saído para Freud nem para Winnicott. Ele brincava com ela. Enquanto isso, na semivigília da análise, fazemos como essa mãe que dá corda, cutuca a fera sem feri-la muito, usa a voz para iludir, maravilhar (Winnicott), criar um campo (Baranger) de estar junto (Stern), talvez o maior carro-chefe do tratamento.
Já a interpretação boceja. Entrasse em cena, estragaria o espetáculo como a primeira opção da mãe. Mas não foi embora. Ela aguarda. Ela chegará na hora certa. Ela chegava na hora certa até mesmo para Melanie Klein que poderia escolher a primeira opção, mas não no primeiro momento. É só revisar seus casos clínicos, onde explicita na teoria e demonstra na prática que para dizer “mamãe-garagem” ou “Dick-trem” são séculos de hibernação, construção e estar junto.
Quando o pavimento a dois se ergue entre tantos fantasmas, a interpretação acorda. Ela boceja como um urso após séculos de sono. Toma café, escova os dentes e começa a concretar o abstrato da obra para fazê-la ainda mais abstrata. E coloca a pedra de toque, espantada com o seu próprio poder, parecido com uma esperança de ter estado ali, quietinha, desde o começo, ajudando a construir a torre.
(*) Do livro Crônica dos Afetos – a Psicanálise no Cotidiano, Ed. Artmed, 2016. Segue o link para a página do livro no site da editora: https://loja.grupoa.com.br/cronica-dos-afetos-p990087
(**) Psicanalista e escritor, pai de ex-aluna e colaborador deste blog. Suas publicações mais recentes são A arte de tratar – por uma psicanálise estética (Artmed, 2018) e A porta do chapéu – crônicas em Paris (Class, 2019).