Celso Gutfreind (**)
“Eu não conseguia e ainda não consigo compreender os motivos dos assassinos,”
Aharon Appelfeld, Entre nós (apud Roth, 2008)
Sem (ou com) trocadilho, é bem difícil definir o mal. Como todo objeto que se preza – e por conter afetos, mais ainda -, não permite ser olhado com clareza. E muda conforme o foco da época, o lado da história, a cultura do lugar, a ideologia do tempo, a religião da pessoa. Muda conforme a subjetividade de quem olhar (Francischelli, 2007).
“Tenho uma grande arte: / eu firo duramente / aqueles que me ferem”, cantou o poeta Arquíloco há muitos séculos (apud Ramos, 1984, p. 20). A propósito, uma pergunta: o mal é vingança, como no poema? Uma tentativa de resposta: depende da ideologia vigente com sua capacidade de convencer de que está fazendo o bem. Depende do Deus – ou Diabo – em nome de quem se prega. E depende também dos afetos.
No caos dos conceitos, resta-nos observar, pensando e sentindo. E tentar chegar a uma ciência, contraditória como a história e a religião. Mas, talvez, abrindo novas pistas a partir do que, simplesmente, vemos e descrevemos, apesar de nossas próprias distorções.
Observando crianças em idade pré-escolar, damo-nos conta de que precisam acreditar no bem e no mal. Acusam o golpe ao serem confundidas nesta noção. Carecem do lobo e do caçador, de herói e de vilão, da fada e da bruxa. Como se partissem de uma estrutura inicialmente dual, conforme expôs o folclorista Vladimir Propp (1928). A nuança e o meio-termo virão depois.
Para o psicanalista Bruno Bettelheim (1976), as personagens do mundo imaginário são representações que se referem à mesma mãe (ou pai), que o frágil aparelho mental dos pequenos ainda não é capaz de juntar. Fariam parte do desenvolvimento normal, que parte do nada e dos pedaços de coisas sem nome para chegar a algo já nomeado, e no todo (Klein, 1946). Um todo que, inteiro, nunca vem, senão na ilusão do todo, por vezes sonhado, por vezes vivido numa relação madura e autêntica. Somos um projeto de integração, e estar livre para tentar já é próximo do bem saudável.
Estamos batendo à porta da psicanálise, em sua aproximação do mal. Para ela e sua postura dinâmica, ele pertence à vida pulsional, arcaica mesmo (a criança, outra vez), cheia de mal e de bem. Corresponde ao mundo das pulsões em seu domínio de agressão, destruição e morte (Freud, 1920; Heimann, 1982). Traduzindo, umas são do bem, outras, do mal, ou o que não conseguimos conter quando ainda não adquirimos o código moral, herdado de nossos pais e de nossa cultura (superego) (1).
A psicanalista Mélanie Klein (1930) aprofundou as noções de Freud. Deu mais nomes aos bois do mal ao descrever seu atendimento de crianças, mostrando o quanto nascemos com um ódio primordial (2), espécie de sadismo básico, que só experiências gratificantes, ao longo da infância, podem aplacar. Amor, ódio e reparação é o título sugestivo de um de seus livros (Klein e Riviere, 1970). Segundo a autora, é preciso um tempo, neste jogo ficcional (expressão nossa), entre o bem e o mal da mãe para podermos nos constituir e nos elaborar, jogando para fora o que há de mal, pondo para dentro o que há de bom até o saldo ficar positivo. Por isso, no campo das emoções, o mal pode ser visto como algo ainda sem nome, sem representação ou símbolo, outro tema caro para essa analista (Paim Filho e Frizzo, 2008).
Mas o mal, infelizmente, é humano. Ele não para e, felizmente, também evolui como a arte e a ciência. A observação dos bebês, junto com a psicologia do desenvolvimento, tem falado, senão as últimas palavras, pelo menos as mais recentes.
É observar bebês em grupos para ver que, com menos de um ano (antes de caminhar e falar), já mostram o que hoje é descrito como angústia solidária, capacidade de apoiar o outro quando solicitam ajuda ao cuidador de um pequeno companheiro que se espatifou no chão (Goleman, 1995). Os bebés esboçam e, mais ainda, conseguem exercer algum controle sobre o mal. Em outras palavras, se bem cuidados, tentam ser do bem.
O psicanalista Donald Winnicott (1965, 1987 e 1990) levantou a mesma lebre. Ele mostrou, em observações claras e poéticas, a necessidade de uma mãe ou um ambiente suficientemente bom para evitar as consequências maléficas de um sofrimento psíquico. Winnicott foi um dos pioneiros em apontar as relações entre uma vida de privações (afetivas) e o desenvolvimento da delinquência numa personalidade com a necessidade (psíquica) de fazer o mal. Ou, em outras palavras, passá-lo adiante. John Bowlby (1973 e 1979) deu mais vida à lebre de Winnicott, ao descrever como construímos modelos melhores ou piores de apego já no começo da vida.
Hoje não somos mais lineares, tampouco negamos a importância da genética e dos fatores orgânicos. Mas temos indícios suficientes para desconfiar que o mal é também uma resposta ao mal. Algo como olho por olho, dente por dente; aqui se faz, aqui se paga. Basta olhar a vida pregressa de maldosos famosos e também anônimos, com suas infâncias repletas de carência afetiva, abandono, rupturas, separações. (3)
A realidade costuma ser assim, ainda que a canção possa mudá-la: “Non, rien de rien / non, je ne regrette rien. / Ni le bien qu’on m’a fait, / ni le mal, tout ça m’est égal. / (…) Pour aujourd’hui, / ça commence avec toi”. (4) Edith Piaf a canta, tentando varrer o mal do passado. E consegue, talvez porque tenha havido o suficiente de bom em sua vida. A música termina numa espécie de recomeço amoroso, que assegura partir do zero, mas – viajamos nós – graças a um balanço positivo entre o bem e o mal.
Trabalhei, durante alguns anos, como perito psiquiatra no Centro de Observações Criminológicas do Estado do Rio Grande do Sul. Da experiência restou-me o desejo de trabalhar com crianças e a lembrança de histórias do mal, quando não somos acolhidos por aqueles que deveriam cuidar bem de nós. E já não é aquele mal do pensamento, da ideologia, da religião, variante sempre original de uma cultura. É o universal, de não ter se sentido amado, desejado, reconhecido e olhado com carinho pelo outro. O mal afetivo de não ter sido respeitado no direito inalienável do amor.
Berry Brazelton (1981) e Bertrand Cramer (1993) também aprofundaram a ideia, mostrando o quanto o mal – e as demais representações que nos constituem e organizam – correspondem ao sentido que os adultos atribuem aos gestos da criança, ainda quando bebê. Das interpretações sucessivas de um gesto banal, como tocar, dependerá a forma que o bebê se sentirá como autor do toque. Ora terno, ora violento, tudo decidido, lá no começo, pelo olhar do outro com quem interage. Este outro é que lhe atribui o sentido, conforme a sua própria história, com todos os seus bens e os seus males (Brazelton e Cramer, 1989). Assim, não ser compreendido – ou sê-lo mal – torna-nos vulneráveis à maldade. Por isso, é enorme a importância da qualidade de nossos encontros.
Em matéria de mal, nada de boas conclusões: seriam falsas e más. A criança cresce e começa a imprimir nuanças a seu bem e a seu mal. Além deles, como expressou Nietzsche (1885), aprofunda a metáfora e atinge o meio-termo, maior ou menor conforme o que sente. Funde mãe e madrasta numa só pessoa, chegando, na ficção de Mélanie Klein (1946), ao que chamou de posição depressiva com a tristeza necessária de sentir ao reconhecermos a vida como ela é, ou seja, cheia de bem e de mal.
Nada de boas conclusões, mas uma pista parece sólida e mais feita de pedrinhas do que de migalhas de pão, como nas boas histórias. Se a criança sentiu-se gostada e gratificada, poderá tecer mais pontos novos do que tirar o tapete dos outros e fazer o mal. Poderá amar de novo, como Piaf. Do contrário, mal-olhada, mal-amada, frustrada mais do que o necessário, ela fará o mal, também fruto da impossibilidade de se colocar no lugar do outro, aquilo que hoje nomeamos empatia. Trata-se de capacidade essencial para uma boa relação humana, incluindo a do psicanalista com seu paciente. No mesmo sentido, para Serge Lebovici, poder contar com a empatia do outro é o que permite nos lançarmos no terreno da criação e da metáfora em detrimento do mal e do vazio (Lebovici, Solis-Ponton e Barriguette, 2004): “Posso ver a dor de outrem / E não ter tal dor também?”, expressou Blake (2005, p. 69).
A todas essas, concluímos sem concluir, sentindo o quanto o mal está envolto no mistério. Mas já temos sensações boas e más o suficiente para saber que ele não passa longe da parentalidade. Não que o mal seja filho de maus, mas sim de um contexto marcado por más interações pais-bebê e sem substituição adequada.
Mal-amada, enfim, a criança sentirá a necessidade de ferir não aqueles que ontem a feriram diretamente, mas estes que hoje os representam e a quem atribui, transferindo, sua dívida de vida ou de morte. E, assim, dá razão às pistas de nossa ciência e de nossa arte, confirmando os sentimentos do poeta Arquíloco, aquele que, na abertura do capitulo e há muitos séculos, mostrou que obteve amor suficiente para ferir na arte quem o feriu na vida.
(*) Texto selecionado do livro Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade, Rio de Janeiro: Ed. Difel, 2010, Cap. 12, págs. 219 a 225, publicado com a devida autorização do autor e da editora. Para interessados(as) no livro, indicamos a Estante Virtual, onde há alguns exemplares disponíveis, pois da editora está “fora de estoque”.
(**) Pai de ex-aluna da escola, psicanalista e escritor, colaborador deste blog.
(1) Freud define superego como uma das instâncias da personalidade. Seu papel é o de um juiz, um censor do ego, a consciência moral (Laplanche e Pontalis, 1967).
(2) Hostilidade primária, na expressão de Freud (1900). Garcia-Roza (1990) resgata, em Kant, a expressão mal radical, que o filósofo recusara, e também em Freud, que a retoma, no conceito de pulsão de morte, para se referir a uma propensão ou predisposição ao mal no ser humano.
(3) Se a descontinuidade excessiva, no cuidado dos filhos, é uma importante fonte do mal, convém lembrar que o excesso de proximidade, sem respeito aos limites do outro, também o é (Francischelli, 2005). A delinquência, portanto, reside nos extremos das histórias, com a subproteção e a super.(4) “Não, nada de nada / eu não me arrependo de nada. / Nem do bem que me fizeram, / nem do mal, tudo isso não me faz diferença. / (…) Porque hoje / o começo é contigo”, tradução livre do Autor para a música Non, je ne regrette rien, de Charles Dumont e Michel Vaucaire (1960).