Celso Gutfreind (**)
Desde cedo, eu li muita poesia. Não sei como começou. Acho que com a mãe, com a negra Maria e com a vó branquinha quando eu era bebê. Mas isso vem da teoria que eu li depois. A poesia para mim sempre foi prática. Acontecimento visceral.
Lia por ler. Lia, porque gostava. Não tinha a noção da importância, pelo contrário: lia pela inutilidade, pela “desimportância”. O dia, os pais, a escola impunham obrigações, a poesia desobrigava, deixava livre, um brinquedo como qualquer outro do tipo jogar botão, bola, bater figurinha, andar de carrinho de lomba. Não era de ajudar, mas de viver.
Nunca imaginei que a poesia pudesse ajudar tanto e teria a ver com o mais importante na medicina, na psicanálise, no amor. A medicina que eu fiz não seria digna sem poesia. Seria técnica, fria, e a psicanálise, também. A fundação delas era poética igual a quando a vida começou. O amor nem aconteceria. O que seria dele sem a poesia do amor, escrita ou olhada, vivida ou contada?
Ia lendo muita poesia e logo passei a ler os grandes. Eu os encontrava nos sebos do Centro justo nas horas que eram poéticas e minhas. De leitura em leitura, percebia as suas peripécias na imagética de um Drummond, nas metáforas de um Bandeira, na complicada simplicidade de um Quintana, no Gullar e sua vida posta na palavra como depois eu tentaria como poeta e analista. E tinha as traduções dos gregos, dos franceses, dos ingleses. Eles foram a minha Bíblia, as minhas obras completas de Freud. Há livros inteiros dentro de mim em compartimentos ou misturados, versos versículos, teorias práticas. Logo deu vontade de ser como eles, fazer o que eles faziam como quem imita pai, mãe, irmã, amigo. Queria até superá-los como um menino ao craque, daí eu lia e imitava. Não me faltava, modéstia à parte, sensibilidade e inteligência para isso. Também não me faltava, modéstia inteira, a convicção de que eu nunca chegaria naquele patamar tão elevado. Havia limites afetivos, geográficos, linguísticos, mas isso não era motivo para não tentar ou perder a esperança. Sonhava com a criação do grande texto como o jovem boleiro sonha com o Barcelona a que nunca irá de fato e aonde já chegou sonhando.
A consciência do meu tamanho levava-me a uma escolha desenhada desde o começo. O melhor que eu poderia fazer era fazer do meu jeito. Também nisso a poesia foi decisiva: ela me ajudou a ser eu mesmo. Como a psicanálise.
(*) Do livro Crônica dos Afetos – a Psicanálise no Cotidiano, Ed. Artmed, 2016. Segue o link para a página do livro no site da editora: https://loja.grupoa.com.br/cronica-dos-afetos-p990087
(**) Pai de ex-aluna, psicanalista e escritor, tem colaborado com este blog desde o começo, em maio de 2016. Suas publicações mais recentes são o livro de poemas Tesouro Secundário (Artes e Ecos, 2017), A arte de tratar – por uma psicanálise estética (Artmed, 2018) e A porta do chapéu – crônicas em Paris (Class, 2019).