Bruna Braga Silveira (*)
Começo este breve texto com cenas que ilustram as diversas possibilidades de aprendizagens das crianças todos os dias, cenas em que elas apresentam e reapresentam situações diárias vividas e soluções cheias de inovação e potencial de criatividade.
Cena 1: Três crianças brincam com o kit médico. Uma coloca uma boneca dentro da camiseta e diz que está grávida, deitando na frente de outra que será a médica. Outra chega mais perto e diz que será o enfermeiro e pega um objeto para tapar o nariz, alegando não querer sentir o “cheiro” da cirurgia. Pergunto o porquê de terem pegado notas de dinheiro “de mentirinha”. Elas respondem que é porque uma irá dar dinheiro à outra pela consulta e que esta precisará dar troco.
Cena 2: Chega mais uma criança para brincar. Ela coloca uma boneca dentro da camiseta e diz que é a sua vez. Começam a cirurgia. Uma delas diz: “Não é a tesoura primeiro! É a anestesia!” E pega uma injeção de brinquedo e entrega para a médica.
Cena 3: Ainda na mesma brincadeira, a mesma criança de antes coloca duas bonecas dentro da camiseta e diz que está grávida novamente. Ela se deita no chão com o bebê que já nasceu nos braços e segura um bolo de notas de dinheiro “de mentirinha” em uma das mãos. Após o “parto” acontecer, ela se senta e, estendendo a mão que segurava as notas de dinheiro, pergunta à médica: “Quanto custa?” Elas negociam e uma dá à outra uma nota de R$5 e outra de R$10. Eu pergunto: “quanto foi?” Uma delas calcula rapidamente e diz: “15!”
Na maioria das vezes, como é possível observar, nem preciso intervir, elas resolvem tudo sozinhas: arranjam novos papéis nas brincadeiras para que todos(as) possam participar, super poderes que se auto anulam e todos(as) vencem ou, até mesmo, a explicação de um resultado de uma operação matemática que terá que ser “traduzida” por mim em seguida. Traduzo porque esse é, dentre outros, o papel de um(a) professor(a): o de facilitar as aprendizagens – não só de conhecimentos, mas também de habilidades e atitudes; o de mediar as relações, os discursos, o encontro de uma criança com a outra; e ainda o de preparar o ambiente para que tudo isso aconteça.
As crianças seguiram brincando com o kit médico por, pelo menos, três meses. Brincaram da mesma brincadeira, mas ela ficava, a cada dia, mais cheia de detalhes, de discursos e de expressões mais complexas. Os desafios aumentavam cada vez que brincavam, assim como o conhecimento que emanava dos diálogos construtivos por elas vividos.
Assim, vemos que a infância é uma fase intensa em relação ao desenvolvimento intelectual, emocional, motor e social do ser humano. A criança vive esse período como um momento próprio dela, em meio a diversas linguagens, das quais destaco – e dou viva! – o gesto e ato de brincar. A representação que ocorre no brincar é uma condição básica para o surgimento do pensamento, como a capacidade de evocar e articular ações interiorizadas.
Ao brincar, a criança se socializa e sua comunicação com as demais está sendo estimulada. Atividades corporais como dança, música, jogos teatrais e manipulação de objetos diversos também a estimulam, aguçam sua criatividade e sensibilidade, e desenvolvem, ao mesmo tempo, a coordenação motora, sua expressividade e suas emoções. Promovem a ampliação de conhecimentos e a aproximação entre as crianças e delas com os adultos, colocando-as em contato consigo mesmas e com o mundo. Isso acontece de forma gradual, ao longo do desenvolvimento da criança, e depende significativamente dos estímulos, desafios e oportunidades que o meio lhe oferece.
Os sistemas de representação da realidade são dados socialmente e a linguagem é o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos. Por isso as brincadeiras ajudam no desenvolvimento da criança, contribuindo com aprendizagens e negociações que ela levará para sua vida.
O universo infantil é uma grande brincadeira. Uma brincadeira das boas! Daquelas que a gente tem saudades só de lembrar. E para aqueles que ficam aflitos com a criança que só brinca, o dia inteiro, eu digo: que bom se fosse sempre assim com todas as crianças do mundo! Ah, e também: brincar dá muito trabalho, viu?!
(*) Bruna é professora do Grupo 5B da Projeto, em seu 2º ano de escola, tendo trabalhado conosco anteriormente como estagiária.
Bruna, este texto é a cara da tua turma, das aulas que vives com as crianças, do modo como a sala de aula do G5B é organizada. A curiosidade, a dúvida, a pergunta, tudo isso salta aos olhos de quem passa pela sala de aula, pátio ou qq outro espaço em que essas crianças estão. Acho que isso é mérito delas e tb de ti, que aproveita esses momentos junto às crianças, não perdendo a oportunidade de escuta e de cultivo à infância. Apenas uma provocação, algo para pensar: será mesmo que somos facilitadores? Será que as crianças precisam de facilitadores? Para quê? Para quem? Lendo novamente teu texto, acho que ele diz e prova que não. Acredito que as crianças precisam de professoras e professores desafiadores, que ouçam o que elas dizem, e produzam encontros capazes de produzir pensamentos e isso é tarefa complexa, que deve se manter assim. Parabéns pela bela escrita!
Prof. Bruna! Belo e comovente texto! Muito feliz em saber que Beni a tem como professora. Gostaria apebas de acrescentar que brincadeira não é coisa apenas de criança, não! Do alto de meus 45 anos sigo brincando sim…e muito!
Prof Bruna , parabéns pelo emocionante texto , só tenho elogios , agradeço pelo empenho e dedicação com as crianças. Elas precisam brincar e viver intensamente cada momento. Isso é infância feliz .
Que bacana teu registro e reflexão Bruna! Fiquei aqui imaginando os diálogos vivídos pelas crianças e super me diverti, abriu um sorriso externo e também interno que aqueceu o coração!
Que legal ver como nesse movimento espontâneo de “brincadeira” se põe em prática e também se (re)elabora um repertório vasto de situações, emoções e construções bem subjetivas e profundas também.
Parabéns pelo texto! = )
Deborah, depois de ler o texto para o grupo de estudos de filosofia, fiquei pensando mais ainda na tua provocação… Volto seis casas e reconsidero o professor-facilitador, mas ainda não achei uma palavra que traduza os gestos que fazemos diariamente. Quem sabe a gente não descobre em um desses encontros?
Brenda, eu que fico muito feliz com a confiança e parceria! Brincadeira é para quem quer brincar, não é mesmo?! Eu também adoro!
Adriana, obrigada pelos elogios! Estou muito feliz com a nossa parceria. Aproveito para compartilhar que não só durante as brincadeiras, mas em diversos outros momentos, eu aprendo muito com essas crianças!
Obrigada, meu querido colega! Conhecemos a grandiosidade de um encontro com crianças, não é mesmo?! Por isso está explicado esse espontâneo sorriso externo e interno que tu descreveste!