Celso Gutfreind (**)
“Que hoje eu me gosto muito mais
Porque me entendo muito mais também”.
Gonzaguinha
A psiquiatria, desde há muitos manuais, chama de transtorno de oposição desafiante. Ao sistematizar o distúrbio, arma-se de critérios quase irretorquíveis, de análises sistematizadas e de muito poder científico para, nos casos mais estridentes, poder inclusive medicar. Medicar é histórico e humano, portanto, ambivalente. Pode aliviar e salvar. Pode lucrar e afogar.
Quem vive o transtorno – mãe e pai especialmente, mas também professor – sente a dureza. A criança se opõe a tudo e a todos com uma energia profunda. De criança. Ao sim, não, ao não, sim, invariavelmente e vice-versa do contrário assim por diante. Não tem descanso, e a energia do adulto já não é profunda, porque não é de criança. Mas, sendo possível pensar no meio disso (o grande desafio), vê-se como quase sempre um cenário deslocado. Afinal, desde o começo, tudo é teatro no drama humano. A personagem criança se opõe, desafia, está no seu script. Ela desempenha o seu papel de mostrar que falha a sensibilidade na personagem adulto para compreender a metáfora implícita em todo teatro. No fundo, fora da distorção, a criança não se opõe nem desafia. Ela simplesmente expressa a quem possa entender. Ao modo da psiquiatria, sistematizamos a sua fala:
1 – A criança expressa que, lá no começo, antes do sintoma, ela só queria empatia, autonomia, liberdade. Nada disso se consegue com leveza e palavra, ainda mais quando se é criança. Tudo isso se consegue à custa de muito ato, oposição, desafio – a explosão da adolescência -, ainda mais quando se é criança. De certa forma, mãe e pai se opõem ao movimento. Desvendássemos a trama, veríamos que eles são (sem querer) os verdadeiros desafiantes de um movimento natural (e questionador) de crescimento. É surpreendente como nas boas obras, e ser humano, apesar das falhas, consiste numa boa obra.
2 – A criança expressa que faltou aos pais – como expressão e não crítica – a capacidade de estar junto, acolhendo, limpando, esperando. Acolher, limpar e esperar é mais difícil. É humano desejar o fácil, especialmente hoje em dia.
De olho no diagnóstico, mede-se, nomeia-se e às vezes até se medica a criança, considerada responsável por se opor e desafiar. Mais fácil, aparentemente mais rápido, tudo o que se quer hoje em dia. Mas isso ou aquilo muda o olhar e o rumo de um tratamento. De olho na interação, pode-se tomar o caminho mais difícil e fatigante: compreender, e a tentativa, então, é de intervir no ambiente, fazendo-o mais acolhedor. É mais lento (às vezes, quase impossível), tudo o que não se quer hoje em dia, embora seja mais justo com o teatro verdadeiro e, em longo prazo, mais efetivo. De olho no diagnóstico, se oferece ainda mais limites para a criança. De olho na compreensão, se concede aparentemente menos limites para a criança.
No fundo, a psicanálise contribui com a psiquiatria quando sugere que não há limites mais sólidos do que a presença afetiva e compreensiva, essa que não cabe em manuais, não responde a remédios e se chama amor. O amor e sua falha. O amor e seu passado disposto a revisar-se para se relançar em outro amor. O amor e sua palavra depois do amor. O amor e sua lenta construção em meio a seu histórico de destruições. O amor e sua fúria.
O amor e sua persistência em estar junto sem se entregar para o rótulo ou para a facilidade. O amor, difícil como sempre.
(*) Do livro Crônica dos Afetos – a Psicanálise no Cotidiano, Ed. Artmed, 2016 (págs. 36 e 37). Segue o link para a página do livro no site da editora: https://loja.grupoa.com.br/cronica-dos-afetos-p990087
(**) Pai da ex-aluna Mariana, psicanalista e escritor, tem colaborado com este blog desde o começo, em maio de 2016, com textos inéditos e/ou selecionados de diferentes obras suas já publicadas. Algumas de suas publicações são A porta do chapéu – crônicas em Paris (Class, 2019), A arte de tratar – por uma psicanálise estética (Artmed, 2018), Tesouro Secundário livro de poemas da Artes e Ecos, 2017), A infância através do espelho – a criança no adulto, a literatura na psicanálise (Artmed, 2014), A Dança das Palavras: Poesia e Narrativa para Pais e Professores (Artes e Ofícios, 2012) e Narrar, ser pai e mãe e outros ensaios sobre a parentalidade (Difel,2010). Neste mês de setembro de 2021, está lançando o novo livro A nova infância em análise, pela Ed. Artmed.