Celso Gutfreind (2)
Criança escondida. Já conhece todos os esconderijos da casa e retorna a eles como um lar onde se está seguro de encontrar tudo como antes.
Walter Benjamin
Foi o professor Dionísio Toledo que me conseguiu um ingresso para assistir à palestra do José Saramago. Na fundação Gulbenkian, de Paris, com um tempero a mais: o escritor acabara de receber o prêmio Nobel.
Claro que fui. Sentei-me entre uma linguista francesa e uma professora de Teoria da Literatura, que era romena e estava radicada na França. Atrás, alguém portava um livro do Todorov, e na frente, um do próprio Saramago. Todos esperavam que ele falasse de literatura.
Ele não falou. Disse que estava meio cansado de falar de literatura. Queria falar da vida e escolheu o tema da infância.
Também disse que estava cansado de falar de infância e tentaria ser breve. Por isso, escolhia dois momentos principais na vida de uma criança: o primeiro – grande alegria -, quando se tornava curiosa e começava a perguntar por quê. O segundo – tristeza enorme -, quando os adultos não suportavam tanta curiosidade e convenciam a criança a parar de perguntar.
O escritor abordou outros assuntos, inclusive o cinema; afinal, estava diante do cineasta Manoel de Oliveira, então com noventa anos e alegre por fazer perguntas.
Não as reencontro na memória. Só a síntese dos dois momentos fundamentais, que retomei, tempos depois, ao ler As pequenas memórias. No livro, Saramago resgatou seus primeiros anos. Mostrou que entendia mesmo da infância e suas negociações delicadas com o medo e com o tempo: “Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada hora tinha apenas sessenta minutos…”.
Entre as pequenas memórias do autor e as minhas, menores ainda, dei-me conta de que a infância é decisiva, porque está repleta de encontros formadores. Deles nasce, o primeiro momento, com a alegria de ser curioso, o desejo de perguntar, verdadeira fonte de tudo, incluindo a literatura do Saramago e os amores.
O escritor, em poucas palavras, disse o que importa. Ou quase tudo. Faltou dizer que novos encontros, durante a vida, são chances preciosas de enfrentar a tristeza do segundo momento. Porque há professores, amantes e amigos capazes de nos relançar. Há o cinema e a literatura do Lobo Antunes. E a do Saramago. Mas, em suas pequenas memórias, não faltou dizer: “…ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer”.
Ali sim sugeriu que, após a alegria de encontrar a curiosidade e a tristeza de perdê-la, um encontro com um livro ou com o outro pode criar o terceiro momento decisivo, quando recuperamos o desejo de perguntar.
(1) Texto publicado no livro “A Dança das Palavras: poesia e narrativa para pais e professores”, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 78 a 80 (https://arteseoficios.websiteseguro.com/loja/detalhe.php?id=341), reproduzido aqui com a devida autorização do autor e da editora.
(2) Pai de ex-aluna da escola, psicanalista e escritor, colaborador deste blog.