Todos os dias você convive com outros seres humanos e precisa resolver algum conflito, chegar a algum consenso para a convivência harmoniosa com outras pessoas, certo? É deixar alguém passar antes de você no cruzamento da avenida, é negociar algum desconto em alguma compra, participar de uma reunião para resolver algum problema do edifício, do trabalho ou até uma questão doméstica. A vida adulta é cheia desses momentos, não é mesmo? Mas e a vida das crianças? Você já pensou nos inúmeros desafios que seus filhos ou filhas vivenciam diariamente nas “pequenas” rotinas deles? O que a escola do seu filho ou da sua filha pode fazer com esse intenso laboratório cotidiano de convívio e coletividade?
Nós, aqui da Projeto, sabemos o que fazer. Nós fazemos desse laboratório um exercício de cidadania. Porque o adulto na reunião de condomínio já foi um estudante tentando resolver um problema em sala de aula. Mas o investimento em diálogo, debate, construção de um coletivo em diversidade de ideias e opiniões não é só a semente de um futuro mais tolerante, empático e com valores éticos para a sociedade. É a vivência de cidadania hoje mesmo, com os colegas, com os amigos e os diferentes grupos sociais das crianças.
Uma escola para compreender o mundo não ensina apenas as contas, o “abc” ou os assuntos de ciências. Além do currículo protocolar, incentivar o aluno a pensar, a observar em sua volta aquilo que aprendeu, a se relacionar com o outro e com o espaço público e de convivência tem lugar de destaque no programa de ensino da Projeto: com nomes por todos conhecidos, datas no calendário e rituais próprios com status interdisciplinares, essas ações são destaques na nossa rotina de trabalho. E, entre elas, está a realização periódica das assembleias.
“As assembleias acontecem semanal ou quinzenalmente, como parte da rotina de cada grupo do ensino fundamental, a partir do 2º ano. São momentos de 30min a 1h em que a turma toda se reúne para conversar sobre determinados assuntos escolhidos em conjunto, a partir de sugestões que os próprios alunos vão trazendo a respeito de situações que precisam ser melhoradas”, explica Beth Baldi, diretora pedagógica da Projeto.
Com mesas e cadeiras dispostas de modo que todas possam se enxergar, as crianças trazem os assuntos prioritários à roda, observando o tempo adequado para o debate de cada tema previamente selecionado. Se, por alguma razão, algum assunto não tiver tempo hábil para ser apresentado, passa a ser prioridade da próxima assembleia. A partir disso, os alunos envolvidos ou que queiram se manifestar podem expor seus pontos de vista e, um de cada vez, respondem ou trazem questões e sugerem encaminhamentos.
“Pensamos em um formato de rodízio, para que todos os alunos possam exercer diferentes funções a cada assembleia. Há um aluno ou uma dupla que inscreve aqueles que desejam falar, enquanto o outro controla o tempo. Há o que coordena e vai dando a palavra aos colegas e aqueles que anotam os combinados e as conclusões”, completa Beth.
Cristine Zancani, mãe da Clara, hoje no 4º ano, já escreveu um texto para o nosso Blog no qual discorre sobre o tema e destaca o protagonismo das crianças na proposta, lembrando que a professora acompanha o processo, intercedendo para garantir os objetivos do trabalho, auxiliando na organização e amarrando as falas trazidas pelos alunos e alunas, que são ensinados a não citar nomes.
“As crianças são ensinadas a não dizer, por exemplo, ‘fulano corre na escada’, mas: ‘a turma está com um problema de corrida na escada’. Esse aprendizado se faz com certos percalços, mas se faz. A partir de então, elas começam a sugerir formas de solucionar a questão, até que a forma que pareça melhor para todos seja escolhida. Ao longo da assembleia, os problemas detectados são colocados em um envelope onde se lê ‘problemas’, que fica colado na sala. A partir do momento que essas questões são solucionadas, passam para o envelope dos ‘problemas resolvidos’. Problemas e soluções tornam-se palpáveis e visíveis”, lembra Cristine.
Outro destaque nas assembleias da Projeto é a seriedade com que as crianças encaram esses momentos e o modo como se comprometem com o seu desenvolvimento, assumindo valores sociais e éticos elevados. Alguns adultos chegam a se espantar em como as crianças amadurecem com essas experiências, construindo atitudes coletivas responsáveis, instigadas e apoiadas por adultos experientes da escola, onde passam pelo menos um turno dos seus dias. Foi o que aconteceu quando Elena, à época no 2º ano, chegou em casa com um relato pessoal sobre a assembleia.
“Ela veio me contar, muito orgulhosa e animada, que ‘levantou’ um assunto na assembleia sobre partes íntimas. Fiquei intrigada. Como assim, Elena, ‘partes íntimas?’, perguntei. Ela então me contou que alguns colegas ficavam querendo espiar as meninas no banheiro depois do recreio, que aquilo a incomodava e que, em vez de ‘ficar fofocando’, preferiu levar o tema ao debate. Perguntei como a situação tinha sido resolvida e ela disse: a gente conversou e se entendeu e nunca mais aconteceu, mãe”, conta Tatiana Cruz, mãe de Elena.
Quais os significados de uma experiência assim para um aluno, para a família e para a escola? A mãe de Elena arrisca uma resposta:
“Acho importante quando uma escola não nega os problemas e sim os encara e convida os próprios protagonistas dessas questões a encontrarem soluções para essas questões. Eu não tenho a ilusão de que a Elena não enfrentará desafios pela vida afora e nem posso protegê-la de tudo e todos. O que me deixa feliz é saber que, assim como em casa, na escola, a fala dela e dos colegas também é legitimada, eles são convidados a verbalizar as questões, dialogar e propor resoluções. E o surpreendente da assembleia, com todo o seu ritual e formalização, é que as crianças se mostram mais ‘maduras’ do que são fora dela, tanto que, nem sempre, em seus momentos mais espontâneos, conseguem manter os combinados formulados sem a ajuda de algum adulto. É um aprendizado progressivo, que leva tempo e acontece aos poucos, mas somente se vivências como essas, de lidar com os problemas, sem fofoca, com transparência e diálogo, respeito ao discurso do outro, aprendendo a escutar e a divergir, são proporcionadas frequentemente. E é uma experiência em que todos crescem: aquele que deu um passo em falso tem a chance de acertar e aquele que acerta percebe também a humanidade do desacerto. Um case para muito adulto também”, diz Tatiana.
E aí, não é que aquele velho ditado – “conversando a gente se entende” – parece ter mesmo razão?
4 razões para amar as assembleias
1) A realização da assembleia propicia a valorização da escuta e da percepção de que uma mesma situação pode ser vista de diferentes maneiras, que são vários os pontos de vista envolvidos. O coletivo passa a se materializar, e a importância do outro na vida do indivíduo, também.
2) A experiência legitima o poder da palavra, do diálogo, estabelece um marco dialético para a resolução de conflitos, que passa por saber ouvir e saber verbalizar.
3) O acolhimento de uma reivindicação sem nomear os agentes e estereotipá-los ajuda a reduzir situações de bullying e diminui o estigma do erro, permitindo que as crianças possam assumir suas responsabilidades com menos julgamento e mais empatia.
4) A prática periódica desse espaço de conversa vai, aos poucos, conferindo autonomia às crianças para que exercitem a escuta e a fala fora do espaço da assembleia. É uma atitude que, gradativamente, se incorpora à vida cotidiana, com ganhos em outros momentos e ambientes da escola e fora dela também.