Julio Cesar Walz (**)
O sorriso de uma criança recoloca ou reconstrói o desejo de vida e de viver. É um passe de mágica. A alegria que sentimos ao vermos uma criança correr, sorrir, brincar chega a ser indescritível. Seu olhar e curiosidade espontânea derramam sobre a vida uma alegria sem receios, uma ausência do peso da obrigação moral, do ter que ser certinho, ou das obrigações em cumprir exigências de uma vida cheia de juízos e condenações. Talvez essa seja a pureza da criança, como nos cantou Gonzaguinha (1), em seu verso:
“Eu fico com a pureza
Da resposta das crianças
É a vida, é bonita
E é bonita
Viver
E não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser
Um eterno aprendiz”
Brincar é um ato de vida sem a exigência da realidade. No brincar, a criança não precisa ser coerente e adaptada. Me recordo que certa vez eu queria brincar de autorama e convidei meu filho mais velho. Peguei a caixa com a pista, carros, controles. Abri-a e fui montando a pista, pois ele era pequeno e ainda não tinha condições de fazer os encaixes. Terminada essa etapa me levantei para ir à cozinha e quando voltei ele havia desmontado a pista. Imediatamente eu disse: “mas assim a gente não vai conseguir brincar.” E a resposta veio assim: “mas pai, eu tô brincando”. E era a mais pura verdade. Ele estava brincando.
É a partir do brincar ou do lúdico que a criança busca a realidade, seja a realidade das emoções (internas) ou dos fatos (externos). Ele permite que se explore as emoções sem o constrangimento das contradições inerentes do viver. O brincar é um ato de generosidade que a vida oferece às crianças para que possam se desenvolver num ambiente intermediário (2), sem o peso excessivo do real. Nesse ambiente, os adultos ou a realidade não entram como princípios norteadores. Nesse intervalo de espaço e tempo é que a criança, com ela mesma, com suas emoções e pensamentos, vai se conhecendo, se desenvolvendo e se des-envolvendo, na medida em que constrói mundos, reconhece emoções, visita as contradições e dá saltos de crescimento. O brincar é o grande aliado do viver. Sem esses longos anos do “faz de conta”, a vida psicológica fica mais dura e mais difícil na vida adulta.

(…)
Mas muitos adultos, infelizmente, confundem o brincar com uma ação real, quer dizer, se a criança está brincando de “arminha” (arma de brinquedo), alguns adultos enxergam ali um bandido ou um potencial criminoso e vestem-se de educadores. Ou seja, dão realidade a um faz de conta. Deixa de ser uma brincadeira com um tempo limitado de existência. Nessa confusão maltratam as crianças, que estão apenas e somente brincando. Elas sabem que estão brincando e, raramente, o faz de conta deixa de ser um faz de conta para elas. Quando os adultos não enxergam essa diferença, podem sim gerar confusões na criança e na relação com elas, pois acabam atacando a percepção da criança, que não se sente bandida, mas ouve que é ou será ou é tratada como se fosse. A criança sente-se feliz e exuberante por viver o faz de conta. O problema é que ela encontra um adulto orgulhoso e sábio por ensinar a criança que ela será uma criminosa se não for castigada pelo futuro que ele imagina como será.
As crianças sabem que a realidade do brincar é um faz de conta, mas os adultos não sabem mais e, em muitos momentos, não enxergam dessa forma. Acham que o brincar é uma realidade, um fato, e especialmente eterno, como se o que ocorreu hoje não fosse um faz de conta e sim uma realidade que se estenderá amanhã e por toda a vida. E, dessa forma, frases como “é de pequenino que se torce o pepino” ganham força. Trata-se de uma interpretação distorcida, porque a experiência do brincar ficou real para o adulto, deixou de ser um faz de conta ou algo imutável e, dessa forma, a criança que está apenas brincando precisa ser corrigida do seu erro e com argumentos muito fortes. E como ela está cometendo crimes, pensa o adulto, precisa ser punida ou educada. Confusão total de línguas. E quem mais sofre são elas, as crianças, porque não têm como se proteger da versão do adulto, a não ser com certos enfrentamentos diante de alguém que ficou cego, surdo e dogmático.

O brincar é o recurso que temos para escapar da ilusão de onipotência (3). De maneira sintética, poderia dizer que essa ilusão ocorre quando achamos que apenas nosso pensamento é real, ou seja, quando acreditamos que apenas o que pensamos é verdadeiro, no sentido de realidade. Invadimos ou negamos a vida, ou seja, não interagimos, mas apenas temos certezas, mesmo que a realidade ou alguém nos mostre o contrário. E assim, na vida adulta, com o esquecimento total ou rejeição do seu brincar, ou do seu lúdico, tornamos tudo real. Aí, nessa posição, o adulto acaba se atrapalhando, para dizer o mínimo, e passa a ser juiz do faz de conta, ou seja, torna-se um educador em relação à criança, e não mais alguém que está aí para ser parceiro da construção da experiência do viver de alguém que está descobrindo diariamente a imensidão da vida, e do pensar e do imaginar.
(*) Trecho do 1º capítulo do livro Cuidar não é educar, de Julio Cesar Walz, Ed. do Autor, POA/RS, 2023, com uma pequena adaptação e a devida autorização do autor. O livro encontra-se à venda no site da Editora Sinodal e na Amazon.
Com o mesmo título do livro foi produzido um ótimo Podcast, com vídeos de 2 temporadas disponíveis no Youtube, e com uma terceira vindo aí, a partir de abril. Vale muito a pena assistir/ouvir!
(**) Psicólogo/Psicanalista, colaborador deste blog e pai de ex-alunos da Projeto.
(1) Música O que é, o que é?, composta por Gonzaguinha e lançada em 1982.
(2) Donald Winnicott chamava esse ambiente de transicional, nem dentro nem fora.
(3) Para quem deseja se aprofundar nesse assunto ou ter melhores esclarecimentos sobre a ilusão de onipotência, sugiro o livro: GUEDES, Paulo S. R e WALZ, Julio C. O Sentimento de Culpa. 3.ed. Porto Alegre: Ed. do Autor. 2014