Celso Gutfreind (**)
Eu jogava futebol de botão com meus amigos. Manhãs ou tardes inteiras, dependia do turno do colégio. Não era o jogo em si, mas o entorno: era dentro. A gente inventava campeonatos, histórias para os jogadores, fofocas, alegrias, Deus e o Diabo na terra do sol: havia pátios para serem as canchas.
A gente aprendia da vida e da morte quase tanto quanto no colégio. Tanto quanto no colégio. Mais do que no colégio. Aquilo era uma escola de vida para nós. E para o dramaturgo e psicanalista Eduardo Pavlosvy que eu pude ler, anos depois. Ele contou a mesma história, vivida um pouco antes na Argentina. Ele também passou a infância, jogando futebol de botão com seus amigos. Inventavam campeonatos, fofocas, alegrias, histórias para os jogadores.
Pavlovsky foi adiante e inventou o conceito de espaço lúdico. São lugares abstratos, cavados na infância entre crianças. Na vida adulta, funcionam como um reservatório da saúde mental. O dramaturgo emprestou a história ao psicanalista que, no seu trabalho, estimulou a criação de lugares como este. O psicanalista devolveu ao dramaturgo quando, em meio a uma depressão, era capaz de voltar a brincar (escrevendo) e ficar bem.
Brincávamos muito. Havia os botões geniosos. A gente chamava de “os lisos”. Quer dizer, não eram botões, eram gente de verdade como nós e nossos pais. “Os lisos” não gostavam de treinar. Compartilhávamos esta ilusão e tínhamos muita raiva deles. Havia os dedicados que a gente chamava de “os tais” tal era a nossa admiração.
Os tempos eram fartos de imaginação, embora não fossem de dinheiro. Confeccionávamos jogadores, derretendo plásticos em forminhas no forno da casa. Fazíamos os “panelinhas” em oposição aos “puxadores”, sólidos, industrializados com duas e até três camadas. Às vezes dava confusão, e comíamos um pedaço de botão ou jogávamos com alguma comida. As baratas agradeciam, mas as mães não reclamavam muito: dramaturgas e psicanalistas intuitivas, muito antes de Pavlovsky, já sabiam o que era um espaço lúdico.
Depois, a situação econômica melhorou um pouco, e a família fez uma viagem para o Rio. De avião, pela Varig. Foi uma fartura de comidas, talheres e até coletes salva-vidas. Só não maior do que a extravagância de “puxadores” nas lojas de Copacabana. Fiz a festa, acumulei uma liga nacional, sem contar as internacionais, incluindo a turca e a romena. Juntei na mala os antigos e os novos, o patrimônio completo. Eles estavam se dando bem, não havia ostentação, e a humildade dos “tais” superava a petulância dos “lisos”.
Mas a Varig não era perfeita, e a mala extraviou na volta. Em poucas horas, caí da riqueza absoluta para a penúria completa. A experiência me ensinou quase tanto quanto o colégio. Tanto quanto o colégio. Mais do que o colégio.
(*) Do livro Crônica dos Afetos – a Psicanálise no Cotidiano, Ed. Artmed, 2016 (págs. 72 e 73). Segue o link para a página do livro no site da editora: https://loja.grupoa.com.br/cronica-dos-afetos-p990087
(**) Pai de ex-aluna, psicanalista e escritor, tem colaborado com este blog desde o começo, em maio de 2016. Suas publicações mais recentes são A porta do chapéu – crônicas em Paris (Class, 2019), A arte de tratar – por uma psicanálise estética (Artmed, 2018) e o livro de poemas Tesouro Secundário (Artes e Ecos, 2017).