Ianes Gil Coelho
Tem dias que as aulas de música terminam e logo penso: “hoje foi ótimo, bom trabalho, fiz a diferença, os alunos curtiram de verdade”. Em outros, quando não fico satisfeito, a mente já surge com certas ponderações: “aquela atividade não deu tão certo, eu não estava muito presente, faltou um pouco mais de flexibilidade pra lidar com aquela situação”.
Imagino que essa oscilação seja inerente ao trabalho docente e não ocorra só comigo: dias e dias, alguns melhores, outros nem tanto. Dizem que a tendência, com o passar do tempo, é de que os dias de saldo positivo aumentem significativamente, pela experiência e pelo conhecimento adquiridos. Ao mesmo tempo, esse olhar crítico e reflexivo de quem se questiona e se preocupa revela também a intenção de estar sempre se aprimorando, refinando as propostas, e assim conferindo mais qualidade ao trabalho em sala de aula.
Neste momento de meu percurso como professor de música na educação básica, trabalhando há cerca de seis anos com crianças da educação infantil e do ensino fundamental, tenho focado minhas reflexões em alguns pontos: que experiências configuram ao professor alicerces fundamentais e determinantes para ensinar música em sala de aula? Quais princípios reais e verdadeiros conduzem o trabalho e de que modo isso se relaciona com a trajetória pessoal do professor? De que maneira a identidade artística e docente que busco se traduz na construção de uma forma pessoal de trabalhar e ensinar música, refletida em características metodológicas das aulas e no planejamento do trabalho como um todo?
Em meio a essas questões, recentemente assisti, na programação cultural da Escola Projeto, em que leciono desde 2013, a dois grupos com os quais tive contato ao longo de minha trajetória. Um deles, o Grupo vocal UPA, do qual fui integrante por cerca de três anos, e o outro, a Orquestra Villa-Lobos, que pude conhecer mais de perto, quando realizei estágio docente ministrando oficinas de violão.
Essas experiências me fizeram pensar sobre o quanto do que vejo nesses grupos e do que vivi neles faz de mim o professor que sou hoje. A resposta passa por raízes profundas que muitas vezes escapam a uma capacidade de compreensão maior. No caso do Grupo UPA, me dou conta do quanto algumas atividades e maneiras de ensinar que desenvolvo têm relação direta com vivências que tive ali. Já ao assistir à Orquestra Villa-Lobos, além de lembrar as oficinas que realizei com os alunos – um deles pude, inclusive, ver no palco, na ocasião -, me remeti ao período em que estudei no Projeto Prelúdio, na época uma atividade de extensão vinculada à UFRGS. Pensei no quanto aquela proposta permitia integrar a sofisticação dos instrumentos sinfônicos com a possibilidade de explorar a criatividade e uma maneira alegre e leve de fazer música, nutrir motivação estética a partir da força do encontro humano e explorar a convergência de variados universos sonoros e estilos musicais.
Ao mesmo tempo em que me senti extremamente emocionado ao assistir a essas apresentações ali, na escola em que hoje leciono, pensei no quanto revisitar essas experiências vividas nos permite uma importante reconexão com princípios primordiais que dão sentido ao nosso fazer atual. Também me possibilitou atentar para a importância de sempre trazermos a arte que vivemos além dos muros da escola para dentro dela, e assim, tornar o ato de educar algo vivo e que está sempre em movimento e transformação.
No caso do professor de música podemos, então, pensar que sua construção está associada e integrada a experiências amplas e variadas de sua vida profissional como músico. Experiências que integram o trabalho como educador com o fazer artístico e vice-versa. Iniciativas que levam a música para as pessoas e criam um círculo virtuoso e recíproco de transformação. Ao oferecer a possibilidade de encantamento da música para o mundo essa energia volta em forma de sentido, motivação, combustível para que o professor esteja sempre a se reinventar, conectado com o real sentido que move seu trabalho.
Tudo isso, ao meu ver, interfere diretamente no planejamento e na realização das aulas. Assim, eventualmente, após realizar um ensaio, show ou gravação, vejo algo presente em minha vida como músico invadir naturalmente a sala de aula. Muitas vezes, aquele conteúdo não estava contemplado no planejamento, mas o fato de surgir fresco, amparado numa experiência que foi vivida ali, num momento tão próximo, traz algo tão rico e verdadeiro para a aula que considero importante que seja aproveitado. Lembro de participar de um espetáculo musical no qual fui desafiado a realizar uma cena, memorizando um texto e me aventurando para além das aptidões musicais a que estou habituado. A experiência foi muito interessante e me vi de maneira espontânea, num dia de aula, propondo aos alunos que interpretassem uma cena para introduzir a música que trabalhávamos naquele momento – Pensa que Berimbau é Gaita, de Renato Borghetti. Na cena proposta, um aluno passeava com um berimbau e o tocava para um colega, apresentando ao amigo a novidade, e dizendo algo do tipo “olha aqui, que legal, minha gaita nova!”, ao passo que o colega respondia algo do tipo: “Estais doido, pensa que berimbau é gaita?!”. Lembro que na época a atividade fugiu totalmente do padrão de propostas que vinham sendo realizadas e foi um sucesso. Uma ideia que surgiu diretamente no momento de aula, e que certamente não brotaria sem a experiência prévia nesse espetáculo.
Isso não significa deixar de valorizar o planejamento e a preparação das aulas. Ao contrário, considero imprescindível, por exemplo, tocar e vivenciar de diferentes maneiras o repertório que será trabalhado. À medida que se escuta e se aprende uma canção ou obra instrumental, as ideias vão surgindo: “essa linha de baixo pode ser colocada num ritmo com o corpo, esses versos são perfeitos para realizar uma coreografia, esses ritmos ficarão ótimos tocados pelos tambores e tamborins, e esse vídeo dará uma boa referência do contexto cultural que essa canção remete”. E assim, vai surgindo também um planejamento de aula que se ampara diretamente na vivência do conteúdo musical a ser explorado, mesmo que esteja apenas sendo vivenciado, nesse primeiro momento, pelo professor entre quatro paredes, tocando violão e cantando. Nesse sentido, considero o planejamento também um processo criativo, que se completa na aula em si. A partir dos elementos presentes na música – letra, melodia, padrões rítmicos de acompanhamento, entre outros – o professor passa a vislumbrar (mentalmente e, depois, por escrito) como organizará isso tudo numa aula interessante e rica.
Depois, esse planejamento é colocado em prática com os alunos, concretizando ideias prévias, mas quase sempre também sendo reinventado, completado e enriquecido na aula ao vivo e a cores, o que, longe de descartar o plano realizado, dá sentido a ele, pois é a partir dele que se pode alçar esses voos, sem perder o rumo. Ele torna possível ainda, por ser uma referência ou um mapa do caminho a ser trilhado, registrar observações significativas sobre as aulas e sobre a interação com (e entre) os alunos e com os conteúdos trabalhados, permitindo inclusive as reflexões trazidas no início deste texto, as quais, por sua vez, me levam a melhorar minhas aulas. E, assim, sucessivamente, num processo contínuo e sem fim.
(*) Ianes Gil Coelho é professor de música da Escola Projeto.
Baita texto, Ianes, com reflexões muito importantes que transbordam de ti e dos modos como encaras a docência. Coisa bem boa saber que as aulas podem ser pensadas, ou melhor, vividas pelo professor e pelos alunos com tanta intensidade. Obrigada pela oportunidade de compartilhar conosco teu pensamento sempre tão ativo. Valeu!
Obrigado Débora! Fico muito feliz com teu retorno significativo e também pela oportunidade de exercitar a escrita e a reflexão e estar sempre aprendendo com vocês!
Ianes,
adoramos teu texto aqui em casa e já comentamos com outras pessoas também!!! Ele mostra uma sinceridade ao lidar com um cotidiano docente, a investigação constante e o que é muito bonito – o risco! Em tempos onde se associa demais o eficiente ao previsível, tua reflexão demonstra outros caminhos, onde o processo está aberto e vivo!!!
Que legal esse olhar Ana Helena. De fato o planejado cumpre um papel muito importante de trazer segurança e organização ao trabalho. Chegar nas aulas já sabendo o que se quer e conduzir isso com a convicção de quem investiu tempo e energia mentalizando tudo isso é muito bom.
Mas ao mesmo tempo, é justamente essa segurança construída que também permite dar vazão ao inesperado e não planejado.
Muitas vezes surgem ideias na hora e propostas riquíssimas e vivas vem dessa espontaneidade. Algo que surge ali na hora mesmo e que escolhemos investir e ver no que dá. E que bom quando dá em coisa boa!