Deborah Vier Fischer (*)
Escrevo um breve texto em cenas. Simplesmente porque não há como uni-lo, neste momento. Falta-me força, sobra indignação.
Cena 1: quarta-feira, dia 18 de novembro, 16h, reunião com a artista Elida Tessler, para conversar/combinar a respeito da atividade de fechamento da escola sobre o estudo de sua obra. Elida nos mostra a palavra do dia, postada em suas redes sociais, como parte do projeto “Você me dá a sua palavra”: APETITE. Refere esta, como a palavra que a move neste momento, em que, juntamente com a escola, alimenta-se diariamente de força, ânimo, vontade e coragem de (re)pensar o seu trabalho e a vida, em um ano que nos desafia constantemente para isso. Saí do encontro alimentada, bem servida, saciada.
Cena 2: quinta-feira, dia 19 de novembro, 19h, encontro com duas mulheres incríveis, Kaya Rodrigues e Priscila Guerra, para um bate-papo quente e forte: Vamos falar sobre RACISMO: conversa com quem tem o que dizer. Abro o encontro, que chamamos de “Projeto Convida”, evento criado neste ano pandêmico, com o objetivo de aproximar escola e família em torno de temas que nos tomam como sujeitos sociais, políticos, ativos e críticos que somos. Se pudesse escolher uma palavra para descrever a potência do que foi a noite de quinta-feira, escolheria ALIMENTO. Amargo e ácido, com certeza, nada adocicado, mas trazido à nossa consciência de forma respeitosa e cuidadosa. Kaya nos provocou naquele momento: convido a pensar o racismo olhando para os rostos brancos, para que assim, quem sabe, seja possível que as pessoas enxerguem todos os outros rostos. É preciso que consigamos matar a ingenuidade (ou seria a crueldade?) de achar que está tudo bem. Saí do encontro, preciso dizer, encorajada a ser agente de mudanças, alimentada a oferecer a minha branquitude como fator de responsabilização pelo racismo estrutural que nos assola e, com isso, reconhecendo a minha parcela nesse modo cruel de constituição da sociedade, produzir modificações em modos de ser, pensar e agir.
Cena 3: sexta-feira, dia 20 de novembro, 4h da manhã, acordo subitamente. A insônia impede que eu dê continuidade ao sono. Fazer o quê? Pego o celular e resolvo atualizar informações. Deparo-me com a notícia, recém postada, da morte do homem negro, João Alberto Silveira Freitas, brutalmente assassinato por seguranças – e demais funcionários(as) que assistiram a tudo sem oferecer ajuda -, no estacionamento do supermercado Carrefour. Dali em diante, sono que não voltou mais, esperei o dia amanhecer, tomada de um tremor interno, misto de raiva, fúria, dor e vergonha, muita vergonha, afinal, sim, sou parte disso tudo. Minha palavra para este momento? INDIGESTÃO.
Com apetite, alimentada, porém sem conseguir fazer a digestão, termino a semana. Não encontro mais palavras que acessem o que sinto. Falei com Kaya ontem. Pedi ajuda. Falei com Carmelita, funcionária negra da escola. Pedi que não desistisse de lutar pelos seus sonhos, que não deixasse de acreditar neles. E ouvi dela: “é muito difícil, quando se tem seguranças atrás da gente quando entramos em lojas e outros lugares, como se estivéssemos sempre fazendo alguma coisa errada”.
Recolho-me, preciso pensar. Mas sei também que preciso agir. Há um protesto agendado para o final da tarde, há coletivos organizados, ganhando força e visibilidade, há um grupo de homens e mulheres negras ocupando cargos de vereadores(as) na cidade e no país. Há possibilidades, há sinais de fumaça sendo enviados, há formas de fazermos com que não nos faltem mais as vidas negras. Por hora, preciso encontrar formas de digerir o que me embrulha o estômago, que iniciou a semana com tanta oferta de bons alimentos. Por sorte, eles existem!
(*) Coordenadora geral e de 4º e 5º anos da Escola Projeto.