Virginia Verissimo (1)
Que desafio para uma professora alfabetizar em tempos de isolamento social e aulas a distância! E fazer com que as crianças desenvolvam o gosto pelo que envolve a escola, então! Mesmo a professora sendo como uma ponte, que ajuda a criança a se conectar com os conteúdos escolares, que consegue mostrar o valor daquilo que está ensinando, é difícil de longe. É que precisamos estar ao lado e, de alguma forma, segurar a mão da criança em momentos críticos de dúvida. Por exemplo, sobre com que letra se escreve GATO: com G ou com H? Sim, porque em um certo período do processo de alfabetização, as crianças podem pensar que a sonoridade do nome da letra – no caso [agá] para a letra H – tem de ser levada em conta na escrita da palavra. Nem todas pensam assim, mas todas pensam sobre a escrita. E é lindo quando acompanhamos as diferentes hipóteses das crianças nessa fase, mesmo nos momentos em que elas conseguem apenas nos presentear com a letra inicial e/ou a final da palavra, ou em que escrevem com muitas letras que pareçam para nós, adultos, num primeiro momento, não ter relação com a escrita convencional da palavra. Justamente porque sabemos que aquilo que elas mostram é fruto de seu pensamento, das relações que estabelecem a partir de suas experiências com as letras e com o texto escrito.
Quando penso nisso, sempre lembro de quando eu tinha uns cinco anos e queria muito aprender a escrever. Não pude entrar na escola, naquele ano, mas a vontade de dominar aquele sistema, complicado para mim, não me abandonou. Então, em um dia quente, peguei um pedaço de carvão e pedi que minha prima, um pouco mais velha, escrevesse o meu nome na parede do pátio. Ela escreveu, mas, não satisfeita, pedi também os sobrenomes. Daí em diante, resolvi me arriscar a escrever nas lajes do pátio palavras que envolviam letras conhecidas do meu primeiro nome e perguntei à prima o que estava escrito. Nada. Tentei de novo. Nada! Provavelmente, eu colocava uma consoante do lado da outra e minha prima, coitada, fazia barulhos estranhos tentando desvendar. Ou seja, eu ainda não juntava “lé com cré”! Não entendia a lógica convencional e me indignava: como que um monte de letras juntas não formava uma palavra?!
Não lembro dos passos seguintes em detalhes, mas sim de que nossos nomes completos e o alfabeto inteiro ficaram escritos na parede por um tempo e que continuei intrigada, querendo escrever e ler, buscando entender o que e como se formavam as palavras. Até hoje lembro daquele sentimento que era como uma ânsia de saber mais sobre a escrita. Aquelas letras foram ganhando, então, um sentido diferente para mim, passaram a ser minhas conhecidas. Quando fui professora de 1º ano, resgatei na lembrança essa sensação, para entender mais e melhor o que se passava nas cabecinhas pensativas dos meus alunos e alunas, ansiosos(as) na mesma busca que eu um dia já havia feito, de entender como funciona a escrita. Minha prima, de alguma forma, me impulsionou a ir em frente naquele momento. E as nossas crianças em tempos de pandemia? Como manter essa vontade, essa chama de querer aprender acesa dentro delas?
E aqui vem outra história da qual gosto de lembrar, que tem a ver com a minha relação com os livros. Costumava folhear meus volumes preferidos da coleção Mundo da Criança e lembro das ilustrações, mais do que dos títulos das histórias. Também havia a coleção Ipilivro, cujos livros com histórias infantis do Erico Verissimo eram distribuídos por uma rede de postos de gasolina. Eu nunca li aquelas histórias quando criança, pois não entendia a letra minúscula. O tempo passou e elas não me interessavam mais. Depois, já mãe e professora, conheci as histórias dos Três porquinhos pobres, da Rosa Maria no castelo encantado, do Urso com música na barriga e das Aventuras do avião vermelho. Eu me divertia lendo com e para as crianças e pensava: o que eu perdi?! Hoje vejo que poder sentar e ler para as crianças é um privilégio e tenho certeza que é uma das coisas de que as professoras da Projeto mais sentem falta! Que bom é poder mostrar as letras aos pouquinhos, permitir que as crianças desvendem o título da história. Ler e parar de vez em quando para ver se entendem o que se passa com este ou aquele personagem. Incentivar a que reflitam e imaginem o que significa determinada palavra? Poder estar pertinho quando a história é de suspense e alguém fica com medo. Interromper a história quando algo de muito importante está por acontecer, para que tenham vontade de ouvir o capítulo seguinte no outro dia.
Por essas e por outras, manter de longe o gosto de aprender e a inquietação na busca por respostas tem sido o nosso maior desafio. É o que tem nos mobilizado no momento e estamos todos(as) envolvidos(as) em como adaptar atividades que faríamos, olho no olho, com as crianças. Não conseguiremos sozinhos(as) observar suas reações e incentivá-las a escrever como pensam, propondo, a partir daí, outros desafios. Precisaremos do olhar de quem estiver por perto, pois não estaremos ali para acompanhar cada criança, conhecer as letras que está usando ou lembrar sobre o traçado desta ou daquela letra.
Tampouco temos respostas prontas sobre o que vai acontecer daqui a alguns meses ou sobre a melhor forma de desenvolver virtualmente determinados conteúdos com as crianças. Mas sabemos bem o que queremos para essa fase de alfabetização: que a aprendizagem não seja um sofrimento e que aquilo que estão produzindo agora – escrevendo, por exemplo, HATO (para GATO), BBLT (para BORBOLETA), ELICOPITOR (para HELICÓPTERO), CVLO (para CAVALO) ou AO (para COLA) – seja visto e valorizado, não se perdendo esse percurso precioso que revela a lógica de cada criança.
E, de novo, vem a imagem da ponte através de uma história infantil justamente intitulada “A ponte” (2), que conta sobre dois vizinhos que têm suas casas separadas por um rio. Um deles acaba construindo uma ponte e os dois se beneficiam dessa proximidade. Talvez esteja aí uma saída para que esta quarentena seja mais suave para nossas crianças, no sentido de elas trilharem o melhor caminho possível de aprendizagem: intercambiar nossos conhecimentos. Por mais que nos pareça difícil neste momento, acreditamos que pode ser mais tranquilo se família e escola construírem, em parceria, as alternativas.
(1)Coordenadora da Projeto.
(2)Autor Eliandro Rocha, Ed. Callis, 2013.