Vera Moura (*)
I
Um jeito fácil de matar crianças é não olhar para elas. E pode-se ver, cada vez mais, pais e mães matando filhos, sem precisar responder por isso.
A sinaleira fechou na Felipe Camarão e, como se fosse câmara lenta, foi possível assistir a um assassinato.
Era março, final de verão e de pandemia da covid. O tradicional cotidiano se esforça para voltar ao que era antes e, quando as aulas são retomadas, o calor sufocante segue presente com muita insistência. As pessoas parecem que ficam mais lentas. Mas tem quem goste.
Um pouco antes da esquina, vejo um menino, com um uniforme de escola e possivelmente com seu pai. Parece que esperam o transporte escolar. A mochila está pesada, mas está nas costas dele.
Ele aparenta uns cinco ou seis anos, é uma criança que espera o transporte escolar e o olhar do pai. Este, deve ter descido do apartamento, para acompanhar o filho.
A mãe do menino teria dito: “Tu acompanha ele até o transporte chegar? Vou adiantando aqui outras coisas.” Ele aceita. O menino se despede da mãe e desce feliz com o pai. Eles descem dois andares, mas antes de sair de casa o pai arrasta o celular para dentro do bolso da bermuda.
Então, estão lá embaixo, mas o menino, no lugar de desfrutar da presença do pai, assiste à cena dele concentrado no aparelho. Murcho, sem esperança de conquistar a atenção, resolve chamá-lo.
“Pai, pai, pai.” Este ameaça olhá-lo, mas a máquina é mais sedutora do que a voz do filho, que resolve usar outra estratégia: levanta os braços em direção aos ombros do pai e cola nele. “Pai…pai…pai, me olha, ei!”
O pedido é firme, sem lamúria. É nítido. Nítido de se perceber nos lábios dele, para quem assiste a cena.
O sinal abre. É necessário seguir. Seguir pensando.
II
Na saída da creche, era a hora da chegada das mães, raros pais, para buscarem seus filhos.
Depois de algumas horas sem eles, é de se imaginar que estão com desejo da convivência bem aflorado.
Mas mães, além de mães, são mulheres e precisam conversar. Muitas conseguem chegar uns dez minutos antes para uma prosa no grupo.
Vistas um pouco de longe, ouve-se o intenso burburinho. Algumas risadas, expressões interessadas entre elas. Sobre o que conversam?
Na balbúrdia da calçada, as pessoas que passam precisam pedir licença. Elas dão passagem a contragosto.
Uma mulher, muito jovem, se mantém afastada de todas. Parece não conhecer ninguém, ou nada do que acontece ali lhe interessa.
Do bolso da calça, com uma das mãos, puxa uma carteira de cigarro e um isqueiro. Acende o cigarro e com uma profunda tragada, mostra, de alguma maneira, que a primeira é a melhor. Guarda de novo a carteira e o isqueiro e com a outra mão busca o celular. Todo seu mundo é reduzido àqueles dois objetos. Seria possível afirmar simplesmente assim: fumando e furungando no celular, seu mundo está completo.
Mas ela espera o grosso do movimento diminuir para pegar sua menina de uns dois anos. Não demonstra alegria no encontro, mas recebe a mochila da criança e segue o caminho de volta. Examina brevemente a filha que a segue. Caminha devagar como a menina, por que isso a interessa. Não tem pressa. Está em profunda relação amorosa com o cigarro e o celular.
Depois de poucos metros, a menina com ares de cansada, que caminhava lentamente, afinal creche não é para os fracos, dá uma corridinha. Ela para na frente da mãe, impedindo que ela continue a caminhar. Estende os bracinhos para cima, em direção ao rosto da mãe e com uma vozinha miúda, implora: colo mamãe, colo!
Precisa ser muito insensível para não se comover com essa cena, que se torna mais aflitiva com a resposta da moça ao pedido da filha.
“Espera um pouco a mamãe terminar o cigarro filha!”
III
Nem foi possível lembrar, depois, do almoço com as amigas, porque no restaurante teve uma situação que não se sabe quantas pessoas perceberam.
Um homem de seus 40 anos almoçava com seu filho de uns oito. Possivelmente já haviam almoçado, mas davam um tempo, para o tempo da escola dele. Estava de uniforme e a mochila fora acomodada em uma cadeira. Na verdade, havia duas mochilas. A do pai também estava ali, talvez para levar o computador, que ele consultava.
Na situação, o pai está no computador, aparentemente trabalhando e o filho entediado olhando para o vazio. Em um determinado momento ele tenta puxar uma conversa com o pai. Mas ele estava muito pouco interessado no filho. O menino desiste. Nada do movimento do pequeno restaurante interessava a ele. E também não lhe ocorreu levantar e fazer algumas investidas no espaço. Ele era pequeno, mas grande o suficiente para saber que ficar zanzando de mesa em mesa, era coisa de criança pequena. Não dava para saber se havia mais pessoas interessadas no que acontecia naquela mesa.
Com uma nova tentativa do menino, o pai acaba oferecendo um caro celular para o filho, que deveria ser o dele.
Não parecia que era o que o menino queria. Mas aceitou. Entre o celular e o nada, ele preferiu o celular, vindo pela mão do pai.
IV
Era um dos dias mais agradáveis daquele distante verão, numa praia em Santa Catarina. As duas crianças ainda estavam na fase de se interessarem em construir castelos de areia e água e fazer buracos em busca de petróleo ou ainda um túnel que poderia chegar no Japão. Sob o olhar atento dos pais, eles estavam já quase no ponto de pedir o tradicional milho cozido e o picolé.
Todos devidamente besuntados de protetor solar e as crianças de bonés, desfrutavam daquele momento único. A mãe deles, sentada embaixo do guarda-sol, óculos escuros, o livro fechado, olhava melancolicamente para os filhos, alternando para a direção do mar, onde até pouco tempo pegava o bodyboard para surfar. Esse tempo havia passado.
Mas o tempo dos eventos interessantes, este não termina nunca.
Um carro estaciona perto, com três pranchas de surf amarradas em cima. Dele saem três rapazes, que vão abrindo a porta de trás e começam a tirar a parafernália, comum a quem tem bebês: um guarda-sol grande, uma piscina pequena, uns potes de plástico, bolinha, chocalhos… A eficiência do preparo do acampamento logo chama a atenção da mãe. Chama porque simplesmente ela não acredita na eficiência masculina nesse tipo de atividade.
Os rapazes seguem no trabalho de compor a cena, com uma harmonia que levava a crer que tinha sido ensaiada. Um foi buscar água do mar para colocar na piscina. Outro montava o guarda-sol, e outro ainda abria as cadeiras e ajeitava as toalhas, uma sacola que deveria conter fraldas, água potável e algum alimento para bebês.
Quando tudo está em ordem, um deles tira de dentro do carro, um bebê de verdade, de uns dez meses, tranquilo e feliz de ver toda aquela imensidão. Um dos rapazes tira a fralda e o que estava com ele no colo o coloca dentro da piscina. A fuzarca estava garantida. Potes, chocalhos voavam para fora e os rapazes provocavam mais ainda a alegria do bebê.
A mãe das crianças parou o tempo. Queria saber onde estava a mãe do bebê e qual dos rapazes era o pai.
Pensava como ela tinha tido coragem de entregar o seu bebê para três pentelhos que se tivessem 25 anos, era forçado. Não conseguia identificar entre eles um apego especial de um dos rapazes pela criança.
Na sequência veio água na mamadeira, uma fruta e em seguida um leite que derrubou o anjinho, que foi devidamente enfraldado, enrolado em uma toalha para dormir numa cadeira reclinável, embaixo do guarda-sol. Todas as tarefas eram divididas entre eles. Serenamente, decidiram que dois iam para o mar com as pranchas enquanto um ficava. Mais tarde um voltou para assumir o posto de vigilante, enquanto liberava o que estava cuidando.
A manhã foi se indo e nada da mãe descobrir se o bebê era menino ou menina, quem era o pai entre os três e, por fim, onde estava a mãe dele. Ainda não corria a prática de homens adotarem bebês, muito menos em trio.
E assim foi, assim terminou. Bebê acordou, um toque de celular no carro, fez com que um deles verificasse o aparelho rapidamente, enquanto outro expressava a alegria de vê-lo acordado. Eles brincaram mais um pouco até levantarem acampamento. O mistério segue até hoje.
(*) Mãe de ex-alunos da Projeto, Vera é Psicóloga e realizou assessoria para a escola de 2001 a 2008.