O melhor caminho é a criança ser a própria artesã de seus brinquedos.
Este texto é parte de uma série de posts sobre as várias maneiras de educar. Do uso da bicicleta nas cidades, passando pela alegria de ler para uma criança até a força da arte como uma nova visão de mundo porque, para aprender, cada momento conta! Seja bem vindo(a) um mundo de inspiração 😉
Artista plástico e pesquisador do brincar, Gandhy Piorski explica por que temos tanta saudade da nossa infância. As crianças, ele conta, têm o poder de não duvidar do dom da magia e a capacidade de ver vida em tudo.
Brincar é tão importante que a gente nunca esquece das nossas melhores brincadeiras. Bate uma saudade das sensações novas e das incríveis descobertas. É que para a criança que brinca, viver é mágico. Não importa com quem, onde ou com o quê. Tudo é capaz de ganhar vida.
O pesquisador Gandhy Piorski vive na proximidade do brincar. Artista plástico e consultor do Instituto Alana, ele é fonte de inspiração para todo mundo que gosta de pensar as muitas infâncias e as brincadeiras do Brasil.
Seu trabalho em comunidades no Ceará é reconhecido pela sensibilidade ao conectar as brincadeiras com os quatro elementos da natureza — água, ar, terra e fogo. E como essas brincadeiras levam as crianças à experiência do sagrado, da fascinação pelo mundo.
Aqui, a magia do brincar é coisa séria e bem divertida. 😉
O Brasil é enorme, com infâncias muito distintas. Existe um brincar compartilhado por todas as crianças, independente de onde vivem?
Sim. Vê-se isso muito facilmente nos brinquedos ditos tradicionais como piões, petecas, elásticos, bodoques, pipas. Muitos desses objetos de brincar existem em povos distintos e distantes uns dos outros no tempo e no espaço, que provavelmente nunca tenham tido contato entre si. Mas não só no que chamamos de tradição. O brincar gestual, sonoro e de uso livre de materiais também se manifesta muitas vezes em parecenças e similitudes, independente da cultura. Pois o que está por trás disso é o alcance imaginário da criança, sua capacidade de acessar os fundamentos da memória coletiva.
Você conta que o brincar leva às crianças a experiência do sagrado. O que isso quer dizer?
Sagrado aqui não tem nada a ver com doutrina religiosa mas com o fascinium do mundo. Com a capacidade de ver em tudo vida. O poder de criar imagens profundas, impressões encantatórias a partir de um conto de fadas ouvido, ou de uma simples mas bem contada história do avô. O dom de não duvidar da magia e ser totalmente receptiva ao que nos transcende.
Você afirma que a criança precisa de silêncio, tempo e espaço para brincar. Pode dar um exemplo do porquê isso é importante?
Quero dar um exemplo não muito comum. Mas justamente por ser incomum, ele pode ajudar chamar atenção para uma reflexão maior. Conheci um menino no sertão que muito gostava de brincar com a morte. Ele fazia diversos cemitérios de piabas que capturava no açude. Depois construía pequenas sepulturas de barro e as enterrava em caixas de fósforo. Era uma criança que desenhava cenas de sofrimento com ar de experiência mística e tinha curiosidade para saber para onde vamos depois do fim. Seu interesse pela morte não era levado a sério e os mais próximos até achavam aquilo estranho. Mas sua imaginação o inquiria sobre aquilo e isso era manifesto no brincar, nos desenhos, na fala, nos sonhos.
Podemos dizer que esse menino tinha um ótimo senso filosófico que jamais foi cuidado. Podemos também dizer que algo em sua interioridade se movia com um grau significativo de energia, necessitando assim de vazão. Pelo tempo que tinha, pelo espaço natural em que vivia, ele podia dar vazão àquilo, criar seus experimentos, materializar suas intuições, codificar seus impulsos. Portanto esse espaço, esse silêncio e o tempo elástico permitem à criança explorar de seus desejos mais recuos, de sua interioridade, de suas buscas mais originais.
Muita gente gosta de dizer que as crianças não brincam mais como antigamente. Você já deve ter ouvido isso algumas vezes. Como entende essa impressão dos adultos? É isso mesmo ou é uma dose de nostalgia?
As crianças brincam o tempo todo. Não param de inventar, de sonhar. No mercado, no ônibus escolar, no apartamento, na rua de uma grande cidade de mãos dadas com os pais. Graças à imaginação vital que as acompanha. Mas o que devemos bem observar é em quais camadas imaginárias elas estão. Digo melhor: qual a porosidade de suas experiências em direção aos códigos culturais mais fundantes da vida social, quais os níveis de penetração no sutil e simbólico de si próprias?
Esse mundo prático, pronto e rápido empreguiça a força criadora das crianças, faz com que elas sejam cada vez mais lógicas, impede ou mascara os acessos àquilo que nos é próprio, padroniza comportamentos e conclusões.
Os brinquedos de artesãos resistem e podem ainda ganhar terreno ou é um caminho sem volta?
Hoje considero que o melhor caminho é a criança ser o próprio artesão de seus brinquedos ou de seu brincar. Isso desde o carrinho de rolimã até uma roldana feita artesanalmente com componentes eletrônicos que mova coisas. O que importa é a possibilidade sempre aberta pelos pais, pela família de investigar com suas próprias mãos, pés e sentidos, agir sobre o desafio que a matéria lhe provoca. Encontrar na matéria e nos materiais provocação suficiente que a faça criadora de seu próprio mundo.
Sem imaginação o pensar não se alarga, não subverte, não transcende.
O momento em que a criança dá um novo uso a um objeto, durante uma brincadeira, é mágico. Ali, concentrada, ela subverte sentidos e recria com o que sua imaginação convida. Ela entende, explora, aprende, ganha conhecimento e experiência sobre o que a rodeia. E completa esse processo da melhor maneira: desenvolvendo-se.
Em vez de um quarto cheio de brinquedos, experimente diminuir a oferta do “tudo pronto” e insira sua filha ou filho em novos contextos. Objetos de cozinha são ótimos para ganhar vida. Assim como caixas de papelão se transformam em túneis, lenços viram infinitas opções, folhas de jornais são casinhas, chapéus e barcos.
Basta incentivar esses espaços e tempos. Como mãe e pai, não se preocupe em explicar muito. Ao observar as crianças, você vai ver como logo elas descobrem esses sentidos. Para se ter uma ideia, algumas escolas especializadas em primeira infância, em países como a Alemanha, costumam tirar os brinquedos da sala de aula por duas semanas para estimular os alunos a criar suas brincadeiras a partir de objetos cotidianos, ou seja, com aquilo que eles têm. O resultado é surpreendente. Já imaginou como seria fazer isso na sua casa?
Sugestão de filme:
Gandhy Piorski foi pesquisador do filme Território do Brincar, de Renata Meirelles e David Reeks.
fonte:
https://medium.com/itau/o-melhor-caminho-%C3%A9-a-crian%C3%A7a-ser-a-pr%C3%B3pria-artes%C3%A3-de-seus-brinquedos-565f45c15a5e#.qq9qusvvq