Gerson Smiech Pinho (2)
Em meio à torrente de mensagens em um grupo de amigos no Whatsapp, mães e pais de adolescentes debatem a respeito do confinamento de seus filhos, iniciado quando a pandemia de COVID despencou sobre nosso país. Junto aos comentários acerca do espinhoso momento e das adversidades experimentadas com a clausura dos jovens – impossibilitados de sair e se reunir –, a certa altura o rumo da conversa se dirigiu às escolas e às aulas on-line.
Enquanto um dos integrantes do grupo fazia considerações sobre a maturidade dos colegas de seu filho e outro levantava questionamentos sobre intervenções da coordenação pedagógica na classe de sua filha, comecei a constatar que nada daquilo que estava sendo narrado havia sido contado aos meus amigos por seus rebentos. Na verdade, eles testemunharam as situações no próprio momento em que transcorriam, postados ao lado dos computadores dos estudantes. Estavam, por assim dizer, “dentro” das salas de aula e acompanhavam boa parte do cotidiano escolar junto aos filhos, tecendo comentários sobre os alunos, sobre o trabalho dos professores e da equipe técnica.
No início do isolamento social, o mesmo movimento que conduziu as escolas para o interior das residências também transportou alguns dos integrantes do espaço doméstico para dentro das salas de aula. Casa e escola passam a ser lugares que se mesclam e se interpenetram, em uma inclusão recíproca de espaços contínuos, como se fizessem parte de uma gravura de Escher.
A cena relatada talvez produza estranhamento principalmente por concernir a jovens que não necessitam do suporte direto de um adulto para acompanhar as atividades escolares. Teoricamente, não havia razão concreta para que seus pais e mães “comparecessem” às aulas. Situação bastante distinta é das crianças e adolescentes que encontram obstáculos para ingressar no ambiente escolar virtual, para permanecer nas aulas on-line ou para acompanhar seus conteúdos. Os motivos para esses entraves podem ser os mais diversos – desde a idade, no caso de crianças pequenas, passando por questões na aprendizagem ou no estabelecimento de vínculos, que demandem apoio direto. Nessas diferentes circunstâncias, a ajuda e o suporte dos adultos passam a ser necessários, senão imprescindíveis.
Independentemente das razões pelas quais se dê, a não diferenciação entre os espaços doméstico e escolar não é sem consequências para crianças, adolescentes, seus pais e professores. O ingresso na escola representa, na vida de um sujeito, uma primeira experiência de separação do âmbito familiar. Permite navegar por um mar desconhecido, rumo a um território estrangeiro. Ali, se encontram novas paisagens, personagens com rostos e estilos estranhos ao espaço doméstico, único lugar habitado até então. Nesse sentido, ir para a escola representa uma espécie de aventura, a descoberta e o desbravamento de um novo universo.
Não é raro encontrarmos mães e pais, principalmente de crianças pequenas, queixosos de que seus filhos pouco lhes falam sobre o que acontece durante o tempo de permanência na escola. A curiosidade parental é proporcional à conquista de autonomia pela criança, em um domínio fora do alcance do olhar e do controle dos pais. Nessa direção, o papel da escola transcende muito a transmissão de conhecimentos e constitui um território para construção de laços com outras pessoas – adultos, crianças e jovens – com as quais múltiplas experiências são produzidas.
A repentina subtração desse espaço nesses tempos de pandemia faz com que o espaço escolar, normalmente situado como um campo de socialização e independização, acabe se limitando às aprendizagens formais. Desse modo, o papel de amplificação de inclusão no campo social e de distanciamento do espaço familiar acaba se perdendo, o que conduz a efeitos sintomáticos, já que a escola estabelece uma relação de alteridade fundamental entre pais e filhos. À propósito de aprendizagens, ao que tudo indica, um dos ensinamentos que a pandemia pode nos deixar como legado é o reconhecimento da importância dessas funções tão essenciais que a escola cumpre na relação entre aqueles que a frequentam e suas famílias.
(1) Texto publicado no Sul 21 em agosto de 2020.
(2) Pai de ex-alunas da escola, psicanalista, membro da APPOA e da equipe do Centro Lydia Coriat.