Ana Carolina Rysdyk (1)
Com participação de Deborah Vier Fischer (2)
“Real: termo empregado como substantivo por Jacques Lacan, introduzido em 1953 e extraído, simultaneamente, do vocabulário da filosofia e do conceito freudiano de realidade psíquica, para designar uma realidade fenomênica que é imanente à representação e impossível de simbolizar. Utilizado no contexto de uma tópica, o conceito de real é inseparável dos outros dois componentes desta, o imaginário e o simbólico, e forma com eles uma estrutura.” (ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel; Dicionário de Psicanálise, 1998, p. 644)
— Profe, só tem verbo aqui.
— Profe, a palavra “palavrar”, existe?
— Todas as palavras existem?
— Não achei o verbo amontoar. Será que tem na outra sala?
— Posso anotar algumas palavras pra não esquecer?
A visita à exposição Palavrar, de Élida Tessler, foi uma viagem ao real e ao imaginário das crianças. Os 581 pratos com verbos estampados, presos nas paredes, como quadros, poderiam ser interpretados com algo a ser devorado. Talvez Élida tenha devorado os livros que a inspiraram nesta exposição, talvez os tenha degustado aos poucos e escolhido, um a um, os verbos que mais fizeram sentido para ela.
“Élida dá corpo-casa à experiência da literatura, faz explodir no espaço uma série infinita de outras leituras, atravessadas pelos objetos que acolhem essas palavras”, diz o encarte-explicação-viagem que nos foi dado assim que chegamos ao Centro Cultural da UFRGS, para apreciar a exposição da artista, escrito por Eduardo Veras e Gabriela Motta.
Pois, quando as crianças me fizeram aquelas perguntas, minha resposta mais recorrente foi:
— Não sei, o que tu achas?
Fiquei pensando na existência das palavras, na existência dos sentidos, na funcionalidade da escrita e da arte e de tudo aquilo que nos transborda na sala de aula, ou numa exposição de arte. Será que todas as palavras da exposição já existiam ou será que os autores a inventaram?
Marcos Bagno, no livro Preconceito Linguístico: o que é, como se faz, escreveu que “Só existe língua se houver seres humanos que a falem”. Quando escreveu tal frase, ele trazia junto disso uma “opção consciente, política, declaradamente parcial”. Falava de todo o preconceito que a norma culta traz consigo. Um livro indispensável para quem vive no Brasil, eu diria. Marcos Bagno não fala de licença poética, porque não trata a linguagem como algo incorreto, permitido na arte. Mas esse assunto e esse livro, são assuntos pra um outro texto.
Então, se alguém fala uma palavra, ela existe. As palavras todas da exposição da Élida existem e coexistem num espaço físico e num espaço imaginário. Palavras que causam uma tonteira boa, um estado de náusea, que nos deixam espantados, admirados. Que procuram sentidos, existências, resistências. Língua não pode ser só uma estrutura, mas também as palavras que a estruturam. A coisa mais preciosa que nós temos é a linguagem, eu diria. E, dentro da linguagem, está a arte. Ou dentro da arte está a linguagem? Ou será que não há um dentro e um fora e, sim, uma espécie de hibridização que torna a arte linguagem e a linguagem arte?
Enfim, coisas que a arte de Élida nos mobiliza a pensar e, com isso, outras e tantas coisas, pensamentos, imagens nos levam a tensionar verdades, certezas e afirmações. Mas, afinal…
Qual a medida do pensamento?
Como medir algo que não tem medida?
As palavras mudam de lugar, circulam e fazem com que nos reencontremos.
Fazer sentir.
Palavrar.
(1) Professora do 5º ano na Escola Projeto.
(2) Coordenadora pedagógica da escola.(3) Eduardo Veras é crítico e historiador da arte. Professor adjunto do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atua junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e ao Bacharelado em História da Arte. Curador da Exposição Palavrar, de Élida Tessler, é também pai de dois ex-alunos da Escola Projeto; Gabriela Motta é professora colaboradora do Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul. É mãe do Miguel, ex-aluno, e da Ana, aluna do 5º ano da Escola Projeto. Gabriela é também curadora da exposição de Élida.