Lucio Dorfman (*)
Abril de 2020, acho que pouco depois da Páscoa, foi quando percebi a dimensão do problema que iniciávamos a enfrentar como sociedade. Com o prolongamento do isolamento social e o agravamento dos indicadores da pandemia, realmente a coisa havia se complicado ao ponto em que, desse momento em diante, a luta seria pela possibilidade de fazer o confinamento pleno e manter ativas, ainda que virtualmente, as dinâmicas sociais básicas. Fiquei anestesiado por algum tempo, minha família também ficou (e acho que ainda seguimos um pouco). Durante alguns meses sobrevivi na inércia da vida que ficava para traz e no fantasma da ameaça à vida que viria pela frente. Fui acumulando dúvidas, dívidas e perdendo o sono, mas resolvi entender isso como algo desafiadoramente positivo. Lembro de ter feito, nesse período, uma reflexão filosófica existencial, buscando encontrar referências de como enfrentar grandes catástrofes – porque era disso que se tratava o que vivenciávamos, não? -, e conclui que, por ser um problema coletivo, deveria buscar a solução no social.
Quando fiz contato com a Escola Projeto, onde minha filha de três anos estuda, estava neste ânimo: decidido a mudar os rumos das coisas, mas não sabia como. Fui recebido de maneira muito acolhedora pela diretora Neca e conseguimos conversar, de forma realista e franca (e virtual), sobre como pensar um pouco todas essas dúvidas coletivas e o momento de tantas perdas e lutos. Eu falava como pai de aluna, mas também como indivíduo em crise que tentava entender as diversas perspectivas de um grande problema, buscava encontrar sentido na realidade. Nos reconhecemos em uma situação de catástrofe, falamos nisso, admitimos essa realidade ímpar e acho que isso nos aproximou, fez-nos entender um pouco mais como se dá essa guerra insólita. Neca me relatou que a Projeto estava programando seu primeiro retorno presencial, após longo período em suspensão, e que a maior problemática para a escola estava nas dificuldades intrínsecas às transições do ensino, primeiro para a forma virtual total (a virtualização repentina de nossas vidas) e, daquele momento em diante, o retorno dos profissionais e alunos ao ambiente escolar para a forma híbrida, asséptica e incerta. Mas que todos, sem exceção – famílias, funcionários, alunos, professores e coordenação -, estavam apreensivos e receosos em relação aos novos rumos do mundo. A problemática maior, que produzia maior estresse, que se agigantava ao fundo para todos era, impositivamente, a sobrevivência pessoal.
Relatei em nossa conversa uma experiência profissional que tive há mais de doze anos atrás, trabalhando como psicólogo na coordenação de uma escola particular de POA, onde cruzamos um período muito semelhante ao início dessa pandemia atual com a primeira leva da epidemia de Gripe A. Analisamos e lidamos com cenários gravíssimos, nessa feita, que se assemelhavam às circunstâncias do princípio desta pandemia, manejamos questões bem complexas, como o pânico social, mas nunca imaginamos cruzar esta linha cruel atual, esta catástrofe humanitária sem precedentes que é pandemia de Covid-19. O desfecho daquela história foi outro, por sorte, menos trágico. Naquela situação, aprendi que a Psicologia pode contribuir muito na condução dessas transições traumáticas, em que é preciso ser continente para permitir a construção do novo – elaborar. E foi dessa maneira que acabei me envolvendo com o retorno às aulas da Escola Projeto: fui convidado a auxiliar na promoção de um canal de diálogo coletivo, de expressão, um espaço onde os indivíduos que teriam de enfrentar esse recomeço incerto, pudessem externar suas angústias, sofrimentos e, principalmente, pudessem escutar um pouco das situações vividas pelos colegas durante o afastamento – uma troca de experiências.
Foram encontros mediados, muito produtivos, e confesso que quem mais elaborou algo durante esses momentos fui eu. Foi ali que se deu o ponto de mudança na minha percepção sobre os efeitos da pandemia nas nossas vidas. Escutando as vivências de tantas pessoas nessas rodas de conversas, com toda a intensidade que emanavam, vi o quanto o engajamento em causas comuns constrói forças muito potentes para avançar, para encontrar novas saídas a problemas coletivos e para superar grandes enfrentamentos pessoais – e isso me confortou. Entendi que irmanar-se, nessas horas, fazia com que esses lutos múltiplos fossem diluídos no coletivo. Éramos, em última instância, todos responsáveis uns pelos outros e vítimas da mesma situação.
Entendi que a oportunidade de vivenciar esse retorno e ver ressurgir nas pessoas o brilho da esperança no reencontro, mesmo que ainda em pílulas, era uma peculiaridade da nova normalidade: estar constantemente se reinventando, exigindo participação, superação e empatia de todos nós. E este é o ponto comum em todas essas tramas: tentar outra vez, criar, começar de novo, quantas vezes for preciso, para cada vez mais qualificar o sobreviver.
Hoje me sinto agradecido por poder participar desse momento de transição social, aprendendo e podendo compartilhar esse conhecimento com minha filha e vendo como estamos reinventando nosso mundo com valores mais humanitários e empáticos. Espero que essa narrativa encontre seu melhor termo em um futuro próximo com mais empatia, arte, compaixão e amor.
(*) Músico, psicólogo e pai da aluna Sofia do Grupo 3, educação infantil da Projeto.