Artur Gomes de Morais (*)
Há poucas semanas, ao escrever uma mensagem para uma amiga francesa, eu disse: – Viver uma só vez e aguentar dois golpes de estado é dose! Ao que ela respondeu: – Sim, mas você ainda vai ter que brigar para não ter uma escola com censura!
Quando eu tinha cinco anos, no dia 01 de abril, ao chegar com minha mãe e meus irmãos na escola, recebemos a notícia de que não haveria aula, porque o exército estava nas ruas. Cresci numa família não muito politizada, mas meus pais eram lúcidos o suficiente para logo apoiar o partido único de oposição aos militares golpistas e para nos ensinar a ser não somente éticos, mas, também, não submissos. Nada de apadrinhamentos, nada de bater continência para o que nos parecesse absurdo.
Foi no colégio que aprendi a ter um olhar mais crítico e exigente, quando os temas eram cidadania, justiça, igualdade. Sim, em plenos anos de chumbo, tive a sorte de ingressar no Colégio de Aplicação da UFPE, que era um oásis de formação para a criticidade. Num espaço que combinava ideias escolanovistas (o espírito de pesquisa, a formação em artes visuais e musicais, o contato profundo com a literatura), cresci, dos 10 aos 17. Sem alardes, éramos ensinados a não acreditar, cegamente, no que autoridades ou poderosos divulgam, a buscar as causas das diferenças sociais, a ler tanto livros de grandes escritores ou filósofos, como jornais, questionando as realidades que nos eram apresentadas. Na “caderneta” de registro de presença do Colégio – que o chefe de disciplina carimbava, todos os dias – o lema da primeira página era o bíblico “A verdade vos libertará”. Falando nisso, o ensino de religião era opcional – os pais decidiam se queriam ou não que seus filhos tivessem formação cristã na escola. Eu tive e posso atestar: em minha época, as tais aulas de religião já eram mais exatamente aulas de ética, em que líamos e discutíamos passagens da Bíblia, sem nenhum sentido dogmático.
Durante o curso de graduação em Psicologia, atuei no que era o renascimento dos diretórios acadêmicos, participei de um grupo de estudos marxistas e vivi a sorte de ter professores que nos punham a ler livros pouco alinhados com o regime. Assim, pude ler não só Freud e Rogers, mas Eco e Reich, por exemplo.
Quando chegou a hora de buscar escola para minhas filhas estudarem, mantivemos o princípio aprendido: não só procurar uma escola que respeitasse a infância e em que as crianças pudessem ser livres para brincar (e aprender, lógico!), mas que ajudasse a formar futuros cidadãos preocupados em dar sua cota para termos um mundo melhor: com mais justiça, mais equidade, mais garantia de cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que neste mês de dezembro está fazendo aniversário.
Para que esse tipo de escola possa existir, é preciso viver, no dia a dia, direitos humanos como a liberdade de expressão e a liberdade de credo religioso. É preciso a segurança de que todos serão respeitados e escutados, independentemente de raça, etnia, origem geográfica, posição político-ideológica, orientação sexual ou idade. Sim, para formarmos gente pensante e democrática é preciso respeitar a diversidade, assegurar o direito de expressão e não submeter as ciências e as artes aos vieses de grupos religiosos ou seitas quaisquer. Afinal, para ser uma democracia, o poder público e a escola precisam ser, obrigatoriamente, laicos.
Ficamos muito felizes com as escolas que nossas filhas frequentaram. Estamos muito felizes com a escola em que nossos netos estudam, para onde gostam muito de ir, porque são respeitados, brincam, exercem a curiosidade com projetos de pesquisa, leem boa literatura toda semana e… aprendem a ter voz, a lutar por seus pontos de vista e direitos.
“A verdade vos libertará”, dizia a página inicial de minha caderneta escolar aos 10 anos de idade. Quando vou já, já fazer sessenta anos, parece-me extremamente ultrajante ver que certos políticos e grupos religiosos querem censurar a expressão de educadores e educandos. Soa hediondo ler ou ouvir falsos moralistas difamando Paulo Freire, um dos educadores mais respeitados e reconhecidos no planeta.
Penso, enfim, que lutar por uma escola sem mordaças é lutar pela democracia. Concordam?
(*) Professor titular do Centro de Educação da UFPE.